Pode parecer estranho nos dias de hoje, quando todo mundo faz de tudo pra ser curtido e adorado – é o mundo dos coraçõenzinhos cor-de-rosa flutuando pela tela, ou das mãozinhas azuis pipocando – mas existe uma banda que nem é uma banda exatamente e faz de tudo pra não ser adorada e não manter seus integrantes nela e cujo “dono” é um porra-louca antipático, arrogante e antissocial.
O The Fall é, ainda assim, uma das grandes bandas de todos os tempos. Quer dizer, nem uma banda é realmente: é um conjunto-ego de Mark E. Smith, seu “dono”. É como se ele cantasse, tocasse bateria, guitarra, baixo e demais instrumentos, produzisse, escrevesse as letras e as canções, criasse as capas e promovesse o grupo, e de fato ele faz tudo isso, mas não consegue fazer tudo ao mesmo tempo, então tem que juntar uns pobres-coitados pra fazer todo o resto pra ele.
Mark – perdão pela intimidade – é um sujeito que pouca gente que o conhece de forma passageira nutre amores. E olha que ele tem uma vantagem sobre quaisquer outros antipáticos do mundo, já que é um astro da música, com (até 2017) trinta e dois álbuns no currículo e quarenta e um anos de estrada.
Mark E. Smith morreu no dia 24 de janeiro de 2018, aos sessenta anos de idade, anúncio feito por pessoas próximas a ele. Deixou em sua vida algumas lições. A maior é que ser um fdp não o impede de ser um gênio e deixar sua marca nas artes.
Everett True, jornalista e cronista do The Guardian, certa vez escreveu: “eu nunca quis aderir ao The Fall. A reputação de Mark E Smith como um manipulador notável e beligerante o precede. Ele é tão divertido quanto um canalha, mas ele também é muito exigente, muito além do suportável. Eu sou um fã do The Fall, não um fã obsessivo”.
Até aqui, foram quarenta e três integrantes no grupo. Quarenta e três. O jornalista Dave Simpson publicou em 2008 o livro “The Fallen (Searching For The Missing Members Of The Fall)”, no qual faz uma varredura atrás de todas as pessoas que passaram pela banda. Ele vasculhou o continente atrás de nomes como Jonnie Brown, o primeiro baixista do The Fall, que nem chegou a gravar com a banda, saindo antes do lançamento de “Bingo-Master’s Break-Out!”, o EP de estreia de 1978 (embora ele seja responsável pela capa). Brown estava esquecido em Roterdã, na Holanda, num pequeno apartamento isolado do mundo, como se estivesse hibernado nesse tempo todo, perguntando ao autor: “eles ainda tocam ‘Bingo-Master’?”.
Ele conta que nessa busca acabou se tornando tão desagradável e chato quanto Smith (leia aqui o artigo que deu impulso à criação do livro). Virou uma obsessão. “E o The Fall se presta à obsessão. Na coleção de John Peel, o The Fall tinha uma sessão só pra eles. Peel os chamava de “The Mighty Fall” (Poderosos The Fall), ‘a banda pela qual todas as outras serão julgadas’. Mais de vinte e cinco anos depois de surgir, seu público ainda inclui fãs que simplesmente não seguem outras bandas. Entre seus fãs estão desde Calvin Klein até Philip K. Dick (que só pegou o início, já que morreu em 1982). Os músicos e os críticos de música também se derretem: David Bowie, Bo Diddley, Thom Yorke e Alex Kapranos afirmaram ser fãs”.
Tantas trocas de integrantes renderam uma boa definição pro The Fall: “uma banda dominada por uma permanente revolução”.
Mark E. Smith nasceu em 5 de março de 1957, em Salford, Inglaterra, família padrão suburbana e tinha apenas 19 anos quando montou o The Fall, depois de ver (claro) o Sex Pistols em ação, em Manchester. Tão intrincada quanto seu temperamento, a trajetória do grupo segue os altos e baixos criativos e performáticos de Smith, conhecido por exigir no mínimo o impossível dos seus companheiros de banda. Quem entra no The Fall, sabe que não há a menor garantia de estabilidade. E nem sempre é por conta da demissão pura e simples. A banda, não raramente, implode em plena turnê ou até mesmo no palco, com brigas, socos, tapas e voadoras, ou até mesmo integrantes são abandonados em algum lugar só pra deleite humorístico de Mark.
Os métodos de “criar um clima” de Smith incluíam xingamentos, empurrões no palco, cuspidas, ofensas a familiares e até armas. Era difícil de aguentar.
Nem mesmo a mais famosa integrante, a estadunidense Laura Elisse Salenger, a Brix, que foi casada informalmente com Smith, conseguiu decifrar quem ele era. Em seu livro de memórias, “The Rise, The Fall And The Rise”, publicado em 2016, ela conta como foi seu primeiro contato com o namorado, assim que chegou na Inglaterra, em 1983, com 20 anos: “os prédios pareciam que tinham sofrido terríveis atrocidades, o céu era tóxico e as pessoas, sem alegria. Suas roupas eram sem vida. Aquele era o lugar onde o homem por quem eu havia me apaixonado morava. Ele mostrava os lugares que achava importante – ‘olha, a cervejaria tal; olha o presídio tal!’. Entrando no saguão do prédio, me deparei com a sujeira nas paredes e um forte odor de urina. No seu apartamento minúsculo, havia gatos por todos os lados e calcinhas sujas de suas ex-namoradas”.
Ela não se importou com as calcinhas, porque “em primeiro lugar, fiquei tão animada por estar na Inglaterra… Eu era jovem e apaixonada e eu estava nessa banda legal que me transformou na primeira vez que os ouvi. Parecia que estava voando num tapete mágico”. Ela conheceu Smith num show da banda em Chicago. Após a apresentação, correram pra um motel barato ali perto. Foi paixão à primeira vista.
Hoje, ela é casada com Philip Start, um bem-sucedido empreendedor do ramo de moda na Inglaterra, e toca na Brix & The Extricated. Já foi, junto com o baterista Karl Burns, a integrante mais longeva do grupo, o que não quer dizer muita coisa. Hoje, há integrantes com mais de dez anos de serviços prestados, como Keiron Melling (bateria), Simon Wolstencroft (bateria), Dave Spurr (baixo), Elena Poulou (teclas, já fora do grupo e mais recente ex-esposa de Smith) e Peter Greenway (guitarra), curiosamente todos da atual formação do grupo, a mais estável da história, junta desde 2007, unida pra gravação do vigésimo quinto disco, “Reformation Post TLC”.
Apesar das encrencas e perrengues em torno de Smith, é quase um consenso entre os ex-integrantes que trabalhar no The Fall foi uma experiência inesquecível. Tanto que nenhum deles teve história alguma fora da banda. Simplesmente voltaram ao anonimato. A maioria dos músicos que ele contrata são quase-amadores e nada virtuosos, e parte do fascínio disso tudo é que essas pessoas são moldadas por Smith pra conseguir delas o melhor que elas podem tirar. Ele mesmo é um zero à esquerda como músico e como ícone pop: é feio, arrogante, não sabe cantar (por isso “declama” suas letras), não toca instrumento algum, tem desconhecimento total de teoria musical e seu carisma é duvidoso. Mas todos que se envolvem com Smith conseguem oferecer seu melhor, mesmo que esse melhor seja arrancado por métodos nada virtuosos. Entretanto, é só sair do The Fall que voltam a ser ninguém.
Everett True conclui dizendo que pra ele, a obsessão em torno da banda, de gostar ou de estar nela, “é algo perfeitamente natural pra um ser humano que quer apresentar a si um grau de extraordinário em sua vida. Esse ser humano observa com inveja as conhecidas habilidades manipuladoras de Mark E. Smith e deseja que ele possa ser o mesmo. Ele observa com ciúme as lutas, o uso de álcool e drogas e deseja que ele possa se transferir pra ali sem esforço. Às vezes, sim. Essa é a natureza do desejo”.
Pode ser. Porque é inegável que o The Fall, em suas inúmeras fases, de canções mais ou menos acessíveis, mais ou menos agressivas, mais ou menos inspiradas, consegue atrair almas de todos os espectros, dos endinheirados aos pouco aventurados, jovens (poucos hoje em dia, infelizmente) aos mais velhos. The Fall é uma banda pra se agregar um pouco de status, não há dúvida, mas não é uma promessa vazia.
Hoje, aparentemente, Smith se acalmou. Já são sessenta anos de vida e as noitadas solitárias em pubs não são tão frequentes. Smith não é mais visto com frequência, os shows são raros, mas não por falta de propostas (em 2017, até agosto, foram apenas sete apresentações). Essa ausência fortalece as estruturas do mito, embora o grupo tenha lançado cinco álbuns só nessa década, muito mais do que muita banda badalada por aí – a sensação é que Smith seja um correlato do eremita Stanley Kubrick na reta final de sua vida.
“Eu me sinto como um cara estranho, mas eu não perco o sono sobre isso”, disse certa vez. “Acho que os jovens de hoje são legais. São santos comparados com minha geração. Minha geração é só de psicopatas. Sinto um tanto de pena desses jovens de hoje”, completa.
“New Facts Emerge”, o disco de número trinta e dois (trinta e um, dependendo da conta, leia aqui e ouça na íntegra), é meio que uma declaração irônica sobre os dias de hoje – as notícias rápidas e bombásticas que todo mundo esquece em segundos – e sobre a própria banda, que agora não tem mais barracos pra estampar em manchetes, nem trocas constantes de integrantes, nem nada além da própria música.
O The Fall deu a volta completa: nasceu chutando canelas, cuspindo no sistema, vomitando insatisfação, fez sucesso, caiu no subterrâneo, brigou, fez feio, fez bonito, foi e voltou, envelheceu e faz a mesma música crua, de garagem, pós-punk e suja que o consagrou, que o marcou pra história. Mas não procura ser amado. Quem gostar, gostou. Nada de caçar coraçõezinhos rosas e mãozinhas azuis.
Ainda exista atitude por aqui.
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Ouça na íntegra os últimos dois discos: