O LEGADO DE MARK E. SMITH – PARTE 1

“A vida, em si, é um exílio. O caminho pra casa não é o caminho de volta”.
― Colin Wilson

Em 2011, numa entrevista ao The Quietus. Mark E. Smith disse que gostava de ‘O Mundo Submerso”, romance de J. G. Ballard, no qual a elevação dos níveis do oceano transformou a Europa em um pântano. É desse local sujo que surge a narrativa críptica de “Live At The Witch Trials” (primeiro disco do The Fall, de 1979), desbocada e tão improvável quanto a música esquisita da banda que, dali pra frente, só ficaria mais apoteótica em uma visão singular acerca das excentricidades da humanidade. Estúpidos, cegos e invejosos povoam a categoria inundada dos cidadãos ingleses na qual Smith nunca negou com veemência. Ao contrário, parecia amá-los de uma maneira tântrica.

A feiura surge de maneira ainda mais crua em “Dragnet”, também de 1979. Demônios, detetives e heróis desfigurados rondam uma zona espectral, em que figuras cotidianas da Inglaterra adquirem o caráter vivaz do horror. A partir daí, Mark E. Smith elabora cenas de destruição intensa, em que, mesmo na aniquilação mais profunda, alguma sobrevida parece pulsar. A importância da vida reside no caráter abissal do extermínio. Os modelos praticamente inexistentes de configuração sonora (o contrabaixo alto e repetitivo enquanto mal se ouve os tímidos versos da guitarra) resvalam na feiura insípida que Smith tenta resgatar pra auxiliá-lo na busca de tentar dar um lugar pro que é inóspito. A exposição dessa verdade retoma o posicionamento violento como parte do caos no mundo, como nas palavras de Georges Bataille: “eu acredito que a verdade tem uma única face: aquela de uma contradição violenta”. Em algum ponto, Mark percebeu que seria o reconciliador do horror com a criação de um corpo sonoro e lírico capaz de reconhecer as figuras esquecidas no pântano onde se encontrava. E fazer música sobre elas enquanto desapareciam numa sociedade que exclui os tipos de caráter violento. Ao invés de negociar com essa fria e plástica população, Smith homenageia a parcela decrépita. Isso não significa um desprezo pelo mundo, mas uma percepção de que, em sua nitidez deslumbrante, não é possível alcançar a residência do sombrio e do contraditório.

A oposição radical ao que é ordinário faz de “Grotesque (After The Gramme)”, de 1980, uma celebração de todo o mundo varrido pra impossibilidade do crescimento. Pro que não pode crescer porque vive no elemento da destruição e sua mera presença no mundo evoca o caos. Os personagens são decididamente reais e, ainda assim, uma áurea mística espectral os ronda em todos os seus fracassos ao perambular por uma Europa após o colapso da Segunda Guerra Mundial e a indiferença sombria alimentada pela Guerra Fria. O desaparecimento de qualquer grande virtude desperta, no elemento humano, um olhar irmão pras contradições da sociedade. Os retratos fragmentados de uma espécie subsocial auxiliam na composição do painel ambicionado por Mark E. Smith. Manter a integridade é mais do que se firmar com seus valores, mas estar disposto a renovar constantemente seu olhar pra perceber o que é negado. A luta passa a ser não pela vitória, mas pelo reconhecimento dos que nem têm a possibilidade de lutar. É restabelecido o parâmetro do que é ordinário ao negar a percepção vendida de que distinto é aquele o qual ocupa algum lugar de destaque. A regra é a ordem e o que a regra vende como exceção é a performance maior dessa mesma ordem. É sua consagração. De modo que o que nos parece passageiro tem uma duração maior: é o subterrâneo contínuo construído durante toda a vida de Smith.

Em “Hex Enduction Hour”, de 1982, Mark E. Smith agarra-se, primordialmente, à estupidez que ele garante como sua característica mais pura. A banda toca desgovernadamente enquanto o líder luta pra que suas colocações rastreiem, sob a figura-mor de um ambiente urbano pálido, os sopros de vida emanados do submundo. Um olhar na poeira que é o presente e visões fragmentadas assomam-se constituindo o teatro da decadência: ônibus com referências nazistas, a promessa de um outro continente possível na jovem Holanda e o ser humano tentando se limpar de todas as coisas pútridas. Smith tinha o intelectual objetivo pra ficar longe dos destroços e poetizar coisas insossas, como quase toda a new wave e o próprio punk rock estetizado da época. Mas seu nascimento artístico só foi possível através da apreensão das figuras escondidas pelos estilhaços, elas (quase) todas em carne viva. Testemunhar essas atraentes faces desfiguradas tornou impossível uma (re)conciliação com o mundo idílico. Depois de um show do Sex Pistols e depois de uma leitura devorada de Albert Camus, seu olhar pra realidade jamais seria o mesmo. O sentido de “ambição” é invertido: foi necessário estabelecer um monumental corpo sonoro na esperança de restituir fragmentos abandonados.

A loquacidade tempestiva continua em “Room To Live (Undilutable Slang Truth!)”, igualmente de 1982, como se o balbuciar de Mark E. Smith dissesse muito mais do que palavras, formalmente e foneticamente, construídas. A sensação do corpo cercado e intoxicado pela clareza dos outros, intoxicado por todo mundo “parecer, de alguma forma, com David Bowie” faz de “Room To Live” algo mais voltado ao isolamento também material. Se nos antecessores ele nutria uma profunda admiração (ainda que expressada quase sempre satiricamente) pela mistura nebulosa entre os dejetos, neste disco Smith volta ao interior britânico pra construir um paranoico ambiente interno. Até os sons são menos animados, abafados por uma ausência constante. A desilusão com a sociedade britânica evidencia um cansaço do jogo humano. Nenhuma ilusão é manifestada. O costume irrita. Se pra muitos o costume é necessário, pra Mark não passava de outro jogo forçado a colar as pessoas em suas frágeis noções de realidade. Por isso as letras delirantes, recortando abafadamente cenas surreais, principalmente do norte da Inglaterra. Aproveitando as palavras de Georges Bataille, o que Mark E. Smith realizou não foi apenas a distorção total das formas da verdade, mas apresentar o que pode ser visto depois da aniquilação. Se “Hex Enduction Hour” pode ser considerado, de fato, sua obra-prima, o que vem depois é a reconstituição natural na composição do painel dos desfigurados. A virtude dele emana daí: estabelecer diferentes procedimentos que concluirão na totalidade excêntrica dos dejetos. Não é a rejeição dos costumes em si, mas o reconhecimento de que a criação deles permitiu a oposição oculta pelo excesso de zelo, plasticidade e devaneios pseudo progressistas. E tanto os costumes como a música tradicionalmente concebida são coisas que não permitem tal descobrimento. Smith sabia disso e através dessa constatação decidiu investigar as possibilidades negadas. O que normalmente é visto como “sacrifício comercial” foi encarado pelo músico como caminho a percorrer. Sempre, é claro, reparando no que podia estar escondido atrás dos muros dispostos.

Como todos os álbuns dos anos de 1980 do The Fall, “Perverted By Language”, de 1983, usa uma linguagem (tanto musical quanto lírica) intricada, cujos pedaços isolados jamais poderiam ser explicados sem sua totalidade (o que constitui um paradoxo porque é um disco de fragmentos, como todos os trabalhos protagonizados por Mark E. Smith até então). As imagens estão devastadas em situações cotidianas cujo entendimento só é acessível através do delírio. A intenção real da criação de Smith não tem valor: ela apenas é o meio pelo qual os acessos imprudentes da destruição sem sentido tomam expressão. Todas as imagens forjadas em suas músicas são tão prováveis quanto qualquer outra coisa. O mundo onde elas tomam propulsão não é um universo fantasioso da mente de alguém imaginativo, mas nas mesmas ruas pelas quais passamos todo dia indiferentes às imagens com exceção àquelas presentes de forma cristalizada. A filosofia de Mark foi sempre tentar dar vida aos gestos escondidos (claro, com toda a sátira que lhe era característica). E como aceitou a manifestação da poeira (e seus recônditos) foi dar luz às manifestações que as ruínas encerravam…

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A visão repetitiva e aleatória da Inglaterra traz em “The Wonderful And Frightening World Of The Fall”, de 1984, primeiro álbum com participação efetiva da ex-mulher Brix Smith na criação tanto instrumental quanto lírica, um Mark E. Smith viciado na aleatoriedade da vida. As intricadas imagens são consequência de uma busca, também ela, rendida à casualidade (de certa forma, uma perseguição sempre renovada). As músicas têm duração muito parecida e parecem falar, cada uma delas, sobre as mesmas neuroses a partir de diferentes períodos observados. Como um pintor que pinta sempre a mesma paisagem em diversas horas do dia. Na dificuldade que elas aparentam, no entanto, está uma simplicidade irrevogável: sempre atendemos a uma parcela da realidade impossível de decodificar. Conhece-se o mundo pela simples graça e gravidade dele existir. Curioso que pra chegar a este ponto deve-se passar por tantas complexidades.

A intempérie de indiferença crônica contra os “sentimentos” convencionados ambienta-se na atmosfera meio gótica de “This Nation’s Saving Grace”, disco de 1985. A estranheza com o que a Inglaterra se tornou invade as letras: seja numa esquina que se via algum estrangeiro ensanguentado, seja no fato de viver numa ilha que parecia tão perto mas tão distante da imponência europeia ou com a mente nacionalista opressiva do país. É o paradoxo que alimenta a aleatoriedade e a verdade: ama-se e odeia-se algo paralelamente. Essa complexidade consiste no fato de sentir-se estrangeiro num lugar em que você se reconhece a partir dos excluídos. Mas não há irmandade possível, há sempre uma distância impenetrável entre você e aquele quem você deseja abordar e incitar uma conexão com.

A aproximação com a temática gótica prossegue em “Bend Sinister”, de 1986, em que “pessoas razoáveis” são expostas aos estigmas sinistros como se estes fossem formadores de personalidade. Qualquer imagem simples (até o ponto em que qualquer imagética criada por Mark E. Smith pode ser considerada “simples”) adquire um viés obscuro, como, por exemplo, um simples momento antes de algum show do The Fall, que incorpora uma estranha meditação sobre as forças sinistras. Pra Smith, mais do que uma dependência à ordem, é a aceitação do acaso (que carrega intrinsecamente doses de brutalidade e estranheza) que configura as disposições humanas. Por este motivo qualquer afirmação categórica, na vasta bizarrice universal, soa como frágil e impotente. Dentro dessa percepção de Mark, as afirmações podem ser examinadas como estruturas falidas cujas brechas, essas sim, merecem uma visitação. O grande problema é que tudo soará incorreto e impreciso, vago e fantasioso. Se tudo isso pode tornar a pessoa uma vítima do mistério (substantivo último de tudo que é sinistro), também pode dar a força do enfrentamento, a reversão dos processos canônicos do fracasso. Estamos sempre mais perto do enigma e do mistério. A racionalização é uma tentativa de negar o caos em que estamos mergulhados.

“The Frenz Experiment” é o conto de fadas do The Fall, lançado em 1988 (até o ponto em que algo criado por Mark E. Smith pode ser considerado um conto de fadas), em que as aberturas teoricamente pessoais adquirem força ao se irmanar do mundo fantasioso. A impressão é de que se chega tarde demais no universo acontecido e o que resta, apenas, são os detritos de um acontecimento recente, mas cujo exercício chegou ao fim. Não à toa, a estranheza em todos os trabalhos de Smith, pois, o que pode acontecer quando tudo já existiu? É a consequência principal de quem testemunha o oculto dos acontecimentos, o não revelado pela disposição espacial. É um processo de investigação contínuo. Capturado na tensão de flagrar o que é considerado bizarro e sentir um amor por essas manifestações, não há outra opção senão seguir pelo pedregoso caminho decidido por si antes mesmo de ter a autonoção de que fez essa decisão. Se esse mundo sempre o chamava, não havia outra opção senão ceder aos seus entroncamentos.

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O The Fall era uma espécie de praga e em “I Am Kurious Oranj”, também de 1988, há uma pérfida narração sobre exatamente isso: a suposta origem da praga de sofrimento que percorre o mundo. Pra isso, a forte imagem de Mark E. Smith andando por uma terra arruinada associando a histórica Jerusalém a cenas que beiram a escatologia. Não há lugar do mundo que não esteja infestado e a banda não seria diferente: a necessidade de dar voz a sua própria infestação locomoveu-o a esse ponto. Essa estratégia de narração difusa sobre um mundo contaminado é o categórico onipresente nas letras de Smith. A alegria é frequente nelas, mas não sem doses de sarcasmo e corrosão. Mas mesmo o sarcasmo e a ironia parecem elementos constituintes, primários e não derivativos. Formas de sair e de envenenar a alienação. Pra Mark, essa corrosão é um elemento natural e que foi esquecido pelos processos tradicionais de se fazer música.

O período dos anos 1990, na longa e estranha carreira do The Fall, não é muito explorado a não ser pelos fãs da banda. Particularmente, não vejo razão pra isso, pois álbuns como “Extricate” apresentam uma abordagem mais melódica do que os discos experimentais. Os instrumentos de sopro e o contrabaixo menos dissonante ajudam a criar uma ambiência detalhada e de fácil contato. Essa moldura musical menos agressiva e as letras mais descritivas (até o ponto em que as letras de Mark E. Smith consegue se reter à descrição) criam possibilidades melhores de abertura ao ouvinte. A repetição, no entanto, talvez seja maior e explica, em parte, o fato da pouca atenção nessa fase. É claro que Smith tinha o permanente reconhecimento de uma realidade não nítida, mas suas impressões impuseram ao álbum imagens que são capazes de se recondicionarem continuamente, apesar da repetição. A Inglaterra foi deixando, aos poucos, de ser a musa-mor da bizarrice literária de Mark – ganharam contornos as fantasmagorias de um mundo com traços pouco rebeldes, que necessitavam da intervenção do compositor para adquirir alguma força. Se os temas sobre a pátria estavam esgotados, ele voltou ao vago conceito de Room To Live para mostrar que tinha uma inspiração disciplinada inabalável. Pode-se falar que talvez fosse melhor o silêncio, mas esse nunca foi seu forte. Ao contrário, não saber se calar foi uma de suas maiores forças criativas.

“Shift-Work”, de 1991, é o flerte maior do The Fall com a música tradicional. A própria forma de Mark E. Smith cantar resvala na música popular da época. As narrativas são tradicionais e bucólicas, sentimentais e nostálgicas. A política esquizofrênica cede espaço pra contos saudosos sobre imagens impossíveis de se recuperar. Foi assim que ele resolveu sua tensão interior em todos os discos: dar escape à loucura, à insanidade e à bizarrice e, quando esses temas lhe pareceram esgotados, ainda residia uma rica quantidade temática sobre a qual ele sentia necessidade de se debruçar. Sua independência temática é notável e através dessa vasta consciência de sua capacidade criativa pôde manter uma quantidade tão grande de lançamentos ao longo dos anos.

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“Code: Selfish”, de 1992, é o tipo de disco que mostra a que veio logo na introdução, com sinos distantes e teclados emergentes avisando que é outro álbum que vai seguir a linha dançante, embora neste as guitarras sejam mais preponderantes do que em “Shift-Work”. A risada bizarra sobre a condição europeia tem doses de maldade, sarcasmo e certa tristeza: após o colapso definitivo da União Soviética e o avanço ininterrupto do ultraliberalismo, Mark E. Smith percebe-se inundado por futuros homens de negócio que pululam por toda a parte. A distância com a Inglaterra é cortada pra avisar sobre os novos perigos que residem no país. O retorno temático, se acompanhado em retrospecto, tem uma dose gritante do declínio (ou a indiferente repetição histórica) da humanidade e o prolongamento incansável e inabalável do capital como início, meio e fim absolutos. Mesmo com a ajuda de uma instrumental otimista (até o ponto em que os instrumentais do The Fall podem ser otimistas), “Code: Selfish” apresenta inescrupulosos quadros da demência regressiva humana.

A música dançante com instrumentais espirais volta em “The Infotainment Scan”, disco de 1993. O peso da noção histórica torna-se um fardo e o chamado “legado artístico” é visto como um vampiro que tenta tomar toda sua energia vital. Neste ponto, fica nítida a relação de Mark E. Smith não somente com sua pátria, mas como ele sempre esteve atento à música ao redor e reconhece sua força ancestral. É espantoso como Smith retrata essa noção absoluta em cenas surreais envolvendo criaturas sobrenaturais. A própria visão de mundo encaixa-se no seu experimento musical. E faz isso com alegria de testemunhar essa abundância de coisas possíveis. Aceitou essas coisas e viu o modo como estão conectadas e fragmentadas, paralelamente. Não há desprezo pela vida. Quando tudo acaba, ele prova que viveu a máxima de Georges Bataille até o fim. Suas músicas foram registros de formas de alcançar a verdade máxima, com todas as suas contrariedades estampadas em carne viva. Essa foi sua certeza irrevogável.

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