O SUGARCUBES NASCE PRO MUNDO – LIFE’S TOO COLD

“‘Não espere nada do Sugarcubes, nós vamos te decepcionar no final’, declara Einar, que aparenta ser o líder da banda islandesa, embora sua voz seja tão impressionante quanto a de Björk, a boneca de porcelana”. É assim que abre a matéria da Spin de setembro de 1988, assinado por Christian L. Wright, quando “Life’s Too Good”, o primeiro e retumbante disco do Sugarcubes, ganhou vida.

Não foram poucas as publicações que rasgaram elogios ao disco. Uma tamanha unanimidade que até nos tempos atuais, da Internet e das redes sociais, poderia causar estranheza e desconfiança. Com o título de “Life’s Too Cold”, o artigo trata como exótico o local de origem da banda. O mesmo caminho que percorre o famoso artigo da Rolling Stone, escrito por David Fricke e publicado em 14 de julho de 1988, três meses depois do lançamento oficial do álbum: “The Sugarcubes: The Coolest Band In The World”, um trocadilho que segue nesse sentido.

Fricke começa assim: “Bem-vindo à Islândia – a fronteira final da música pop! Não há nenhuma placa assim o saudando, logo que você pega a estrada costeira que sai do aeroporto internacional de Keflavik, na Islândia. Mas deveria haver. Porque a vista que te pega enquanto você dirige pra capital Reykjavik dá um novo significado às palavras ‘rock’ e ‘roll'”.

A Spin dá a exata data, com dia e hora, que o Sugarcubes nasceu: era 8 de junho de 1986, às duas e cinquenta da tarde, “o mesmo dia e hora que nasceu o filho dela com seu marido Thor, que toca guitarra na banda”. O filho é Sindri Eldon e o casamento durou apenas pouco mais de um ano. A banda foi mais bem sucedida, principalmente com o “verdadeiro nascimento”, que é marcado com lançamento e arrebatamento causado por “Life’s Too Good”.

Björk Guðmundsdóttir nasceu em 21 de novembro de 1965. Tinha, portanto, vinte e três anos incompletos quando o disco saiu, mas ela já era habituée de palcos e estúdio desde os onze anos, quando uma inocente (e babyjanemente macabra) versão de “I Love To Love” (de Tina Charles) ganhou as rádios islandeses em 1976, com Björk conseguindo um contrato pra gravar seu primeiro disco, “Björk”, em 1977.

A precoce “boneca de porcelana” ainda se meteu eu outras bandas antes de chegar ao Sugarcubes e ganhar, finalmente, projeção mundial – bem antes do triunfo solo “Debut”, de 1990, que apresentou a “estranha e exótica” cantora pra além dos círculos independentes.

“Todos os membros da banda vieram da cena rock’n’roll islandesa – uma cena que não existia até 1981”, lembra o artigo da Spin. “Mas enquanto outros artistas que tocavam no diminuto circuito de casas de shows lutavam pra emular o que já estava nas paradas de sucesso, o Sugarcubes aspirava criar algo completamente diferente. (…) A música da banda misturava fantasia e realidade, enquanto momentos perturbadores flertavam com a loucura; a dor batia de frente com a alegria; contos eram ditos com vozes estranhas, rindo nas entrelinhas; com essas cinco pessoinhas fazendo exatamente o que queriam fazer”.

Já o artigo da Rolling Stone, publicado dois meses antes do da Spin e que é considerado o texto que alçou a banda ao nível mundial de atenção, dizia que com “Life’s Too Good” os cinco islandeses “estão preparados pra derreter os corações americanos”.

Mas não foi fácil. “Até a virada da década de 1980, era difícil ser ouvido na Islândia. Durante a última metade dos anos 1970, foram proibidos os concertos e as danças nas escolas locais pra conter a embriaguez e as brigas de adolescentes, forçando muitos músicos a tocar coveres em discotecas de hotéis. Havia também um problema com a mídia. A Islândia tinha apenas um canal de TV e uma estação de rádio nos anos 80, ambos operados pelo Estado, com cobertura pop mínima. A Rádio das Forças Armadas, transmitida a partir da base da OTAN em Keflavik, oferecia uma dieta rigorosa de sucessos estadunidenses”, escreveu Fricke. “A situação melhorou. Existe agora um canal de TV comercial local, e os islandeses podem sintonizar estações via satélite. E a rádio pop comercial finalmente chegou aos dias de hoje”.

“O estranho sobre a nova cena de rock islandês é que ao olho estrangeiro não treinado ela é praticamente invisível. Cruzar as ruas de Reykjavik oferece algumas pistas. A cidade em si é encantadora em sua intimidade com o Velho Mundo – o principal centro de compras é grande o suficiente pra apenas uma única via de trânsito, o cheiro de peixe recém-pescado vem do porto no final da tarde (…). As lojas de disco são pequenas, a janela é freqüentemente preenchida por rostos familiares, como Madonna e Pet Shop Boys. O vinil de rock local geralmente é segregado em caixas especiais de Islandmúsik”, conta.

“O circuito de clubes é algo improvisado, uma mistura instável de discotecas, auditórios escolares e espaços inutilizáveis. Um dos principais locais pra música punk era um cinema antigo e fechado fora da cidade, localizado dentro de uma cabana de Quonset. Hoje, os Sugarcubes às vezes podem ser vistos em Duus, uma pizzaria no centro da cidade, com capacidade pra cento e cinquenta pessoas, estilo lata-de-sardinha, e uma pequena pista de dança que funciona como um palco. O mais recente local é a discoteca dentro do novo Hotel Island. Tem um P.A. adequado e uma decoração brilhante que parece o seu pior pesadelo do Studio 54. O resto do edifício, porém, ainda está em construção. A única indicação de que o rock & roll está na área é um sinal no andaime dianteiro que lê, ‘ALLT VITLAUST’ – ou ‘tudo doido'”, segue Fricke.

“Assim que você adentra a cena, no entanto, o número de bandas ativas na Islândia é surpreendente. Não é raro encontrar cinco bandas tocando em Reykjavik em uma noite de quarta-feira. Árni Matthiasson, o crítico de rock do principal jornal da Islândia, Morgumbladid, cobriu uma competição de bandas nacionais no ano passado que citou dois grupos de uma pequena cidade no noroeste da Islândia chamada Stykkishólmur: ‘um deles tem sete músicos, o outro tem cinco. É incrível. Se você colocar esses números na escala estadunidense, você tem que multiplicar por mil. Se você tem trinta bandas na Islândia, é como se tivesse trinta mil nos Esteites'”.

Num pequeno café em Reykjavík, Einar, então, diz a Fricke, atentando a um possível futuro glorioso: “nós nos atemos às nossas armas. Nos recusamos a sentar e relaxar. Nós sempre fizemos alguma coisa. Nossa situação tem sido produzir por conta própria. As coisas boas simplesmente aconteceram sem querer. E isso é bom”.

O que a banda experimentava naquele momento era uma mistura que a Björk tentou analisar a Fricke: “islandeses são uma estranha mistura de esquizofrenia. Eles têm num grande complexo de superioridade, porque acreditam que a Islândia é o lugar mais puro do universo. Mas ele também têm um baita complexo de inferioridade. Eles se preocupam em ser tão bons quanto os países grandes”.

Era exatamente assim que o Sugarcubes era mostrado ao mundo, uma banda que tinha uma oportunidade única de conquistar o mundo, pelo menos na esfera independente, ao mesmo tempo em que posava um desprezo sobre virar estrelas pop, meio que um roteiro básico pra artistas que querem vender a tal integridade.

Fricke era a prova viva de que o Sugarcubes havia chamado atenção. Ele era um repórter da grande Rolling Stone viajando até a Islândia pra falar com aquela banda que até um ano atrás nem mesmo os islandeses sabiam de quem se tratava. “Os fãs locais”, Björk disse ao repórter, “esperavam que a gente fosse pra cima e agarrasse todas essas oportunidades. Mas não. Nós deixamos o mundo vir até nós. Nós não nos vendemos na primeira oferta. Tantas bandas na Islândia estão apenas copiando o que está acontecendo no resto do mundo. A melhor coisa que os Sugarcubes poderiam fazer é mostrar que não precisamos mudar pra conseguir o que queremos. Você pode manter sua independência”.

“Essa é uma velha lição, até mesmo na Islândia”, escreve Fricke. “Einar Örn e Bragi Olafsson foram exemplos pioneiros de sucesso sem compromisso quando sua banda punk Purrkur Pillnikk atingiu o Top 20 islandês em 1981, com seu primeiro EP”. A lição seguiu até o Sugarcubes

“Augun úti”, música do Purrkur Pillnikk, banda que Einar Örn e Bragi Olafsson tinham no começo da década, tirada do disco de estreia, “Googooplex”, de 1982:

A matéria da Spin se ajeita aos poucos pra um bom artigo de apresentação da banda – deixando de lado os toques preconceituosos sobre um artista que veio de uma ilha que muita gente não fazia ideia nem de onde fica, ou pelo menos não fazia até aquele momento.

“Em Reykjavík, o Sugarcubes tem sua própria empresa, a Bad Taste, da qual todos os integrantes são contratados. Foi inspirada nas palavras de Pablo Picasso: ‘bom gosto é o inimigo da criatividade, o assassino da criatividade’. Além de assinar com outras bandas locais, a Bad Taste publica também muitos trabalhos de poesia e até cinema. Mas principalmente a empresa desafia seus fundadores; o primeiro artigo do seu manifesto proclama ‘dominação mundial ou morte!'”, publicou a Spin.

Em artigo publicado na inglesa Record Collector, de junho de 1989, um ano depois do lançamento, o tom de apresentação ainda se via presente – sem Internet, as coisas eram bem mais lentas, como se sabe: “o primeiro single do Sugarcubes no Reino Unido, ‘Birthday’, foi um dos mais idiossincrásicos dos últimos anos. Single da semana da Melody Maker, alcançou status instantâneo de cult. John Peel levou ao ar e a música foi ao top ten indie. O vídeo e a versão islandesa da letra e da música ajudou a incrementar esse status”.

“O apelo deste primeiro single foi reforçado pelas origens incomuns da banda”, continua a Record Collector. “A Islândia nunca ganhou o Eurovision ou mesmo produziu um grupo pop que tenha penetrado em países de língua inglesa. Além do mais, havia uma sexualidade na voz de Bjork que era quase assustadora. Ela já tinha se tornou um símbolo sexual do subterrâneo antes que alguém tivesse alguma ideia de como ela era! O single será lembrado como um clássico pop”.

Apesar do retumbante sucesso de “Birthday”, no Reino Unido o Sugarcubes preferiu ficar com um selo independente, o One Little Indian, de Derek Birkett, baixista do Flux Of Pink Indians. Apenas pra distribuição nos Esteites, a banda aceitou se vincular a uma major – no caso, a Elektra – o que ampliou ainda mais o espanto. O artigo da Record Collector começa exatamente assim: “em dois anos, o Sugarcubes saiu de uma banda desconhecida da Islândia a uma banda cult na Europa e um contrato com uma grande gravadora nos EUA”.

O segundo single do disco, “Coldsweat”, foi, a princípio, uma decepção. Era cantado em inglês, o que talvez o tenha tornado menos intrigante. Mas a canção acabou também se tornando um sucesso nas rádios do Reino Unido, tirando do Sugarcubes a possibilidade de se tornar mais um exótico one hit wonder. Logo depois veio a terceira música de trabalho, a insuperável “Deus”, a música que fez a banda ser conhecida por todos os descolados do mundo, inclusive no Brasil.

Foi exatamente um ano depois do lançamento, em julho de 1989, que a Revista Bizz publicou uma lista com oitenta discos “essenciais” dos anos 1980. “Life’s Too Goog” estava nela: “e quem diria que a nova sensação do pop viria da Islândia? O inusitado de sua origem se reflete no esquisito vocal de Bjõrk, nos efeitos sonoros do trompete de Einar Örn e nas letras surrealistas”. Os críticos da revista elegeram o álbum como o terceiro melhor do ano (de 1989), perdendo o segundo lugar pra “Yellow Moon”, do Neville Brothers, e o primeiro posto pro belo e criativo “New York”, de Lou Reed.

Com o sucesso repentino, Björk e trupe desembarcaram ainda no verão de 1988 pra primeira série de shows nos Esteites. A matéria da Spin encara a cantora com vinte e três anos incompletos e consegue uma deliciosa declaração de alguém que ainda não se deu conta do potencial: “o que você faria se alguém lá na Nova Zelândia decide que você é a pessoa mais bonita do mundo? E então você pega e tem capas de revistas com você ali. Como você se sentiria? Não um problema seu, é um problema deles. Não estou dizendo que não somos uma banda boa. Nós somos. Mas o mundo que conhecemos é a Islândia e quem define o que é ‘bom gosto’?”. Einar completa: “estamos desafiando o senso comum e dizendo ‘por que esse novos sensos são inaceitáveis?'”. E Thor, o (em um ano) ex-marido de Björk, dá ponto final: “estamos dizendo que tudo é possível”.

O Sugarcubes nesse momento era Einar Orn Benediktsson e Bjork Gudmundsdottir nos vocais, Thor Fridrik Erlingsson na guitarra, Bragi Olafsson no baixo e Siggy (Sigtryggur) Baldursson na bateria Às vezes juntavam-se a eles Por Eldon na guitarra, além de um tecladista chamado Melax ou um outro chamado Magga.

Era uma banda ao mesmo tempo autoconfiante e sincera, sem parecer exatamente prepotente. Os integrantes pareciam mais assustados e sem a necessidade de lutar contra algum grau de deslumbramento. “Porque eles são tão independentes e têm o tipo de confiança artística que raramente é construída em toda a vida, os Sugarcubes parecem quase intocáveis e, às vezes, desdenhosos”, escreveu Christian L. Wright, da Spin.

Wright, apesar de lutar pra apresentar uma banda nada deslumbrada, pinta cores de estranhezas que só se vê em astros pop: “pra Einar, há restrições com relação a ser celebridade, ‘eu não sou uma estrela pop’. Ele considerou auto-mutilação como uma alternativa a se submeter aos caprichos dos outros, ‘mas a gente acaba com a banda antes de começar a nos mutilar’. Cada integrante olha pro outro com fascinação, como se eles não se conhecessem, mas ali, na minha frente, enquanto falavam, parecia que estavam juntos há milhões de anos”.

“Nós não estamos aqui por adoração ou admiração”, disse Einar a Wright. “Nós não vamos nos permitir essa vaidade”. Björk, que se estirava na cadeira, complementa, dando fim ao artigo: “eu poderia facilmente ser fazendeira na Islândia”.

Mas ela já parecia se impor um personagem. Talvez já tivesse se dado conta de que o Sugarcubes era sua vitrine. As fotos que as revistas davam à banda tinham, na verdade, só Björk em foco, como a imagem que ilustra a matéria da Spin (e este artigo).

O Sugarcubes, naquele momento, era a única a se destacar da Islândia. Era o pontapé inicial. Muitas outras bandas vieram na cola nos anos e décadas seguintes, agora com a Islândia musical devidamente inserida no mapa. Björk solo inclusive.

“Os islandeses, como se vê, sempre foram um povo teimoso. Você tem que ser muito duro pra sobreviver aqui (na Islândia)”, apontou Fricke. “Ser um pouco louco também ajuda. Einar ressalta que nas sagas islandesas – os grandes contos dos séculos X e XI, do início da história da Islândia – havia um homem a cavalo que estava cavalgando o dia todo quando viu outro homem sentado em um toco de árvore. ‘Este primeiro homem saiu de seu cavalo, pegou seu machado e – whop! – decapitou o outro cara. Pegou a cabeça. As pessoas perguntam: por que você fez isso? E o cara respondeu: o ângulo era perfeito pro trabalho. Nenhum outro motivo. Só que ‘o ângulo era perfeito”. ‘Esse somos nós’, acrescenta Einar com um sorriso louco. ‘Se o ângulo for perfeito, vamos em frente'”.

Mas após “Life’s Too Good”, não havia muito mais. A banda ainda lançou dois discos, antes de decretar o fim em 1992 (houve uma reunião em 2006, pra um show na Islândia): “Here Today, Tomorrow Next Week!”, em 1989; e “Stick Around For Joy”, em 1992. Tirando um ou outro sucesso, especialmente “Regina”, do segundo álbum, o Sugarcubes foi dando passagem pra estrela de Björk brilhar.

Ela era quente, muito mais que uma simples “boneca de porcelana”, muito mais do que a frieza islandesa que a imprensa vendeu em seus primeiros artigos. Sua história se tornou maior do que a da própria banda, mas, por outro lado, é preciso ressaltar que Einar estava errado: o Sugarcubes não nos decepcionou.

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