OS DISCOS DA VIDA: NOSSO QUERIDO FIGUEIREDO

São incontáveis as obras do Nosso Querido Figueiredo – tente ouvir tudo o que tá disponível em seu Bandcamp. Ele é fruto do impulso que a Internet, a banda larga e a tecnologia acessível deram à produção cultural caseira, de baixa fidelidade, criativa, espontânea, independente. Tá com vontade de se expressar, vai lá e cria. E divulga. E que se dane quantas pessoas vão ouvir. O que importa é se expressar, afinal.

Vivemos uma época maravilhosa.

Matheus Borges, o gaúcho por trás do nome Nosso Querido Figueiredo, não se priva dessas facilidade e cria, viajando do eletrônio ao noise, passando pelo punk, pelo pós-punk, pelo nonsense, pelo experimental, pelo pop, pelo lo-fi e haja colocar vírgula nessa lista…

Atento ao momento social e político brasileiro, lançou em 2015 uma série de singles ácidos sobre a agitação política, no que é um exemplo da agilidade com que o estalo de criatividade surge, toma vida e chega ao público final.

Nesta edição de “Os Discos Da Vida”, Borges lista dez discos que encheram seu baú de possibilidades, de onde ele tira as ferramentas pra dar corpo às suas inspirações. É, como se vê e se esperava, uma lista bem eclética, que resume um bocado da sua amplitude de sonoridade.

Belchior – “Alucinação” (1976)
Em “Alucinação”, boa parte das faixas começa com o Belchior meio que se desculpando pelo que vai dizer, como se ele se sentisse um pouco inconveniente por ter que dizer aquilo. Ele meio que se coloca pra baixo, dizendo que é apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco e parentes importantes. Na segunda faixa, “Velha Roupa Colorida”, ele começa: “Você não sente nem vê / Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo / Que uma nova mudança em breve vai acontecer”. Em “Como Nossos Pais”, ele não quer lhe falar, meu grande amor, sobre as coisas que aprendeu nos discos. Ele não está interessado em nenhuma teoria e chega ao ponto de se considerar um sujeito de sorte. Que mundo é esse em que alguém se comportaria como os interlocutores dessas canções? Que mundo é esse em que o Belchior sente estar importunando alguém vinte segundos antes de pintar alguns dos retratos mais vivos e fascinantes já colocados em disco na história do Brasil? Aparentemente, esse é o nosso mundo. O que prova que o Belchior sempre esteve certo a respeito de tudo.

Ouça “Como Nossos Pais”:

Tom Waits – “Rain Dogs” (1985)
Eu passei um verão inteiro ouvindo Tom Waits. Esse foi meu primeiro contato com a obra dele. Passei o verão inteiro ouvindo os álbuns da década de 1970, achando muito legal essa voz, essa figura: um crooner podre de bêbado no fim da noite, tocando coisas no piano que ninguém está muito a fim de ouvir. Até chegar ao “Rain Dogs”, teve um pouco de chão mental. O que fez com que chegar até ele tivesse o impacto necessário: é um disco sobre mudança, dar adeus a antigos portos e se aventurar pelo desconhecido (e encontrar o amor!). Foi o álbum que me sustentou desde a adolescência até descobrir como morar sozinho sem colocar em risco a própria vida. De alguma forma, a sensação de estranheza que permeia o disco se infiltrou em meu corpo. Alguma parte ficou aqui e nunca vai sair. Desde então, vivo com o gosto dessas canções em alguma parte não-identificável da minha alma.

Ouça “Downtown Train”:

The KLF – “Chill Out” (1990)
“Chill Out” é um álbum que coloca um “t” maiúsculo em Transcendência. Aproveita essa liberdade e nos fornece acentuações inusitadas: Tráñscëndêncíä. Belíssima paisagem impressionista, ornada de roncos de motores e música country. Nunca dirigi e me sinto ao volante. Lembro de tê-lo ouvido pela primeira vez, ter sido hipnotizado pela paisagem e caído no sono ao final da última faixa, o que é bem adequado.

Ouça “Elvis On The Radio, Steel Guitar In My Soul”:

B Fachada – “B Fachada” (2009)
Até 2009, o único músico português que eu conhecia era ele, sim, Roberto Leal. Já tinha ouvido falar em outras coisas (Ornatos Violeta), mas nunca tinha me colocado em contato com nada. Foi essa fascinante obra, de forma e conteúdo muito delicados, que canalizou a Lusitânia através de mim. Ouvi-o pela primeira vez às três da manhã, sendo carregado pelas melodias sutis da viola braguesa, não entendendo muito bem o que ele dizia, porque não estava habituado ao sotaque de Portugal. Quando fui dormir, o conteúdo do álbum foi adquirindo densidade. Uma semana depois, eu já sabia todas as letras. Então por, além de ter gravado um disco incrível, me fazer superar um bloqueio idiomático, obrigado B Fachada.

Ouça “Tempo Para Cantar”:

Trilha Sonora – “The Rocky Horror Picture Show” (1975)
Pura catarse. A descoberta da própria sexualidade como um delírio fetichista sci-fi. Músicas maravilhosas pra se ouvir em grupo, pra se cantar em voz alta. Um show de drag queens do espaço. Adoração obsessiva pelos filmes da RKO. Glam rock. Rockabilly. Uma reinvenção do teatro musical. De alguma maneira (muito bizarra), tudo isso está aqui. É um filme que faço questão de rever de tempos em tempos, com um punhado de números musicais singulares. Por si só, o disco funciona surpreendentemente bem. Associados um ao outro, são o totem de experiências inesquecíveis.

Ouça “Dammit, Janet”:

Michael Rother – “Sterntaler” (1977)
Já estou no número seis, meus superlativos estão chegando ao fim. Sempre gostei muito do chamado krautrock. E, por mais que bandas como Can e Neu! (do qual Rother foi membro) tenham um lugar especial em meu coração, esse é meu álbum preferido do período. “Sterntaler” é composto e executado com tanta elegância e precisão, que acaba obscurecendo boa parte do resto da obra de Rother. É um álbum econômico, em sintonia com o trabalho de alguns de seus parceiros mais famosos (Brian Eno, Cluster). Gosto de ouvir em dias claros, de me deitar nas texturas para observar o mar.

Ouça: “Blauer Regen”:

ABBA – “The Visitors” (1981)
Eu gosto tanto de “The Visitors” que já ouvi três vezes desde que comecei a escrever essa lista. Não, não é uma hipérbole. Eu comecei a escrever às dez e já é quase meio-dia. Já ouvi três vezes. Mesmo. Por favor, acredite em mim. E acredite em mim quando digo que essa obra-prima é capaz de mudar vidas. Esse é o poder da música. As canções contidas aqui carregam uma miríade de emoções indizíveis. Para mim, é o melhor exemplo disso. Coisas terrivelmente desconfortáveis de se pensar, de se dizer em voz alta, que só encontram voz na música. É essa autoconsciência (e dos temas do álbum, da tragédia silenciosa da vida a dois) que faz com que “The Visitors” seja tão espetacular. O refrão de “I Let The Music Speak” diz tudo o que precisa ser dito sobre essa relação: “Let it be a joke / Let it be a smile / Let it be a farce if it makes me laugh for a little while”.

Ouça “I Let The Music Speak”:

New Order – “Substance” (1987)
Comprei o disco 1 em uma banca de revistas por cinquenta centavos. Veio junto um pedaço da capa do disco 2. Comprei o disco inteiro em outra loja, anos mais tarde. Entre os dois momentos, ouvindo apenas o primeiro disco, compreendi que música pop não era apenas música pop, que música pra dançar não era apenas música pra dançar. Que o contrabaixo não era apenas o contrabaixo, mas uma ferramenta dominada pelos mais ímpios vigilantes da arte – Peter Hook.

Ouça “Thieves Like Us”:

Lou Reed & Metallica – “Lulu” (2011)
Sempre que falo que gosto muito desse álbum, preciso me justificar, encontrar maneiras de defender o indefensável. Pra mim, é natural que esse seja um grande disco, uma experiência maravilhosa com dois artistas de carreiras distintas. Minha relação começou cedo, no começo da adolescência, ouvindo Velvet Underground. A carreira solo dele também é impressionante. Em vez de construir vinte discos maravilhosos, ele fez uns três ou quatro (“Berlin”, “New York”, “Magic & Loss”). No meio tempo, se dedica a construir metodicamente canções-romance, que são colocadas junto a faixas menores (as faixas-título de “The Bells” e “Street Hassle”). “Lulu” é o apogeu dessa abordagem. A voz envelhecida e raivosa que narra o disco não é a do Lou Reed, mas da própria fúria. Lembro de ouvir “Lulu” pela primeira vez, de ter dormido ao fim do disco um, que ficou no repeat até que eu acordasse. Não foi um sono fácil e não tem sido desde então.

Ouça “The View”:

Scott Walker – “Bish Bosch” (2012)
Tive algumas experiências incríveis com a música do Scott Walker. Me curei de uma das piores gripes do mundo ouvindo “Scott”. Ouvi “The Electrician” quatorze vezes antes de dormir e mais incontáveis vezes já dormindo. Observei, de dentro de um ônibus, o espaço ser tomado pela noite ouvindo “The Drift”. A primeira vez que ouvi “Bish Bosch” foi em um blecaute. Tudo estava escuro e pus os headphones. Aos poucos, fui tomado por uma sensação estranha. A voz de Scott falava comigo. Eu era o ouvinte, afinal de contas. No meio do ruído, havia algo que eu deveria entender. No meio da sétima faixa, “Tar”, a sala foi tomada por luz. E a luz desapareceu. Ouvi uma explosão. Larguei tudo e corri para a rua, onde um poste de luz tinha explodido, na esquina da minha casa. O fogo era alto, faíscas elétricas jorravam e transformavam a noite em dia. A fumaça subia ao céu, sendo consumida pela escuridão.

Ouça “Tar”:

Na edição anterior, “Os Discos da Vida: Nick Allport”.

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