Há uma história antiga, que as vovós costumam contar pros filhos e netos e bisnetos, sobre a força das “tentações”. Na fábula, havia um rapaz que estava em cima de um muro; de um lado, o diabo e todas aquelas tentações; do outro, deus e os anjos. O lado de deus chamava sem parar o rapaz pra que ele descesse pro seu lado. O lado do diabo seguia em silêncio, só olhando pro rapaz.
A insistência de deus e o silêncio do diabo causaram espanto ao rapaz, que sempre ouviu dizer que deus tinha métodos sutis de atração, e o diabo era mais espalhafatoso, esfregando as tais tentações na cara. Resolveu, então, indagar o diabo: “por que o lado de deus está insistindo pra que eu vá pra lá e vosso lado está quieto, dando de ombros pra mim, aqui, em cima do muro?”. O diabo, bocejante, responde: “você está em cima do muro e quem está em cima do muro já é meu”.
As vovós terminavam dizendo que não existe meio-termo. Ou se está do lado de deus ou se está do lado do diabo. Quem não está com deus, está com o diabo. Estar em cima do muro é não estar com deus, logo… E sempre completavam: “se você ficar em cima do muro, você já tomou uma decisão”.
Há uma certa verdade nisso, quanto a “ficar em cima do muro”. Ficar ali, alheio aos dois lados, é tomar uma decisão, e normalmente uma decisão covarde, por isenção. Tomar partido é uma necessidade pra formatar o caráter, mas a questão é que você não precisa escolher um dos DOIS lados, porque não há de fato apenas DOIS lados.
Mas o homem comum sempre foi do oito ou oitenta. Por comum, entenda aquele que se apega a um dos lados por preguiça de pensar. A coisa vem se agravando: hoje, ao que parece, vivemos na era do oito ou oitenta. Ou somos a favor de uma coisa ou somos anti-essa coisa. Não há meio-termo e o meio-termo não quer dizer exatamente que você está “em cima do muro”.
Peguemos o caso típico da política nacional atual. Somos PT ou anti-PT, somos PSDB ou anti-PSDB; somos reaças ou somos comunistas-petralhas, ladrões-petralhas. Não há petista bom, só petista bandido. Ou só há petista íntegro, não há petista com desvio de conduta. A imprensa ou é pró-governo ou é golpista. Não há peessedebista liberal, todos são reaças. Ou só há peessedebista moderno, prafrentex, não há nenhum bandido. Ou você é contra ou você é a favor.
Dificilmente um petista dará o braço a torcer de que a estabilidade econômica conseguida a partir de 1994 se deveu a um plano peessedebista. E nenhum peessedebista (ou anti-petista) admitirá, em hipótese alguma, que a roubalheira da época das privatizações foi um escândalo pior do que o Mensalão. Bandido é bandido de qualquer maneira, roubando um centavo ou trinta dinheiros. Corrupto é corrupto na mesma medida que desvia dinheiro público ou que molha a mão do guarda pra escapar da multa. Mas, é claro, há nuances entre os crimes, de modo que assassinar, estuprar e esquartejar um corpo é totalmente mais grave do que atropelar uma pessoa.
Isso a gente sabe, mas por que a gente não coloca em prática a lógica? É difícil admitir que um governo petista faz algum bem à população e à economia? É muito duro um petista admitir que um governo peessedebista tem muitos acertos sociais?
Por algum motivo, não conseguimos lidar com as nuances entre os extremos. E isso esbarra diretamente na crítica musical (e cultural, no geral).
Até bem pouco tempo, apenas os fãs, cegos pela adoração incondicional e estúpida, não enxergavam os tropeços de seus ídolos. Os trabalhos desses ídolos sempre mereciam nota máxima. Mas a coisa está infectando também a crítica musical.
Com uma certa frequência, é possível ler resenhas que dão nota dez a discos recém-lançados, o que se leva a crer que não há nada, absolutamente nada, de ruim naquela obra. É uma obra-prima, intocável, acima de qualquer discussão. Na outra ponta, dar um zero à obra induz a imaginar que aquele lixo em forma de música não tem uma simples passagem que se salve. Não é possível.
Ficar em cima do muro e não bater forte em qualquer obra é o pior que um resenhista pode fazer, mas o erro se agrava quando ele preguiçosamente não se atém nas nuances entre os extremos.
Talvez a preferência pelos extremos se dê por conta da dificuldade ou preguiça da análise mais profunda. Nada é tão ruim que mereça um zero ou tão bom que, de cara, mereça um dez. O tempo ajuda, mas quando o tempo não está a favor do crítico ou do analista, dá um trabalho danado esmiuçar a obra pra identificar as nuances. Encontrar o meio-termo exato é um troço trabalhoso.
Na outra ponta, há o problema do leitor – de interpretação de texto, na maioria das vezes. O leitor atual tem dificuldades de entender exatamente o que o crítico que dizer. O leitor busca os extremos: teria o resenhista gostado ou odiado a obra? Não passa pela cabeça do leitor que o resenhista pode ter “gostado com ressalvas” ou “achado ruim com ressalvas”. Gostar ou odiar são as duas únicas opções.
Na resenha sobre o disco do Atoms For Peace, “AMOK”, há um trecho em que se lê “que o disco é mais divertido do que ‘The Eraser’, ou até mesmo do que o ‘pra baixo’, difícil e experimental ‘The King Of Limbs'”. Curiosamente, não foram poucos os fanzocas do Radiohead que vieram cobrar os motivos pelos quais o texto fala “que o ‘The King Of Limbs’ é ruim”. Rasgaram a resenha inteira e se deteram nesse pequeno trecho em que confundiram “‘pra baixo’ (entre aspas, ainda por cima), difícil e experimental” com “ruim”.
O disco ganhou uma nota sete, taxado como “bom”, mesmo que o texto se esforce em ver o lado ruim da obra, quando ela se aproxima demais da obra solo de Thom Yorke. Mas os detratores do texto não perceberam isso. Pra eles, ficou difícil identificar se o texto acha o disco “bom” ou “ruim”, enquanto a ideia é dizer que o disco é “bom com algumas ressalvas”.
E sempre haverá ressalvas. Vale lembrar da magnífica propaganda da Folha de São Paulo, cujo mote era: “é possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade”.
Hitler é o sinônimo do mal, mas ele fez tudo isso de bom que foi elencado na propaganda. O problema é que ele fez tudo isso e matou milhões de pessoas em campos de extermínio. Parece óbvio que seus malefícios pra humanidade superam quaisquer benesses que tenha imputado ao currículo. Mas são nuances da sua obra.
Maluf carrega consigo o famoso slogan “rouba mas faz”. As pessoas atribuem a ressalva “mas faz” pra atenuar o “rouba”. Ou seja, Maluf é um pulha, ladrão, mas sempre devolve algo à população que deseja ver nele um “mal necessário” pra evolução de São Paulo (e o estado e a capital sofrem muito hoje por conta disso). O problema aqui é a distorção, como no vídeo de Hitler acima. Ele fez tudo o que seus eleitores dizem que ele fez, “mas rouba”. O slogan deveria ser “faz, mas rouba”. A ressalva deveria ser o “mas rouba”.
A distorção do “rouba mas faz” tem a intenção de entregar às pessoas a ideia de um “bom Maluf”, não um “bom Maluf, com ressalvas”.
Um resenhista que só vê coisas boas numa obra e tasca um texto elogioso, sem observar os tropeços do artista ali na obra, está se prestando à preguiça de não enxergar o todo. “O disco é bom, mas…”, ou “o disco é ruim, mas…”, há sempre uma adversativa.
Obras artísticas dificilmente terão impactos tão maléficos quanto pulhas como Hitler e Maluf tiveram na sociedade, mas elas podem influenciar gerações e o trabalho do crítico é apontar a falibilidade dessas obras – que, sim, mudam sua influência de acordo com a idade e o momento de quem as aprecia, algo a se considerar. Entretanto, é um exercício que todos deveriam fazer.
Desconfio de sites e blogues (ou interlocutores) que não buscam tais nuances. Como o que mais temos são publicações puxa-saco de artistas, assessorias ou selos/gravadores em troca de mimos e presentinhos, vamos nos deparando com uma enxurrada de adjetivos principalmente elogiosos. E assim surgem trocentos “discos do ano” por dia.
Mas o tempo não se vende e trata de colocar tudo no seu devido lugar. As pessoas amadurecem, as obras idem, com todos os seus defeitos e virtudes. A questão é: precisamos esperar tanto? O olhar crítico de tudo está no meio-termo, não nos extremos. Quem entende que vive com o diabo e com deus no coração, ao mesmo tempo, pode enxergar o bom e o ruim em tudo, numa vida de amplo espectro de cores.
É até acertado seu paralelo com a política, MAS (rs)…
Acredito que o mundo da arte é bem, beeemmm diferente da política ou de qualquer outro meio. É salutar manter uma opinião crítica sobre tudo. Na política nem se fala, sempre que surge alguém com ares de “herói” por parte da população (FHC, Lula, Joaquim Barbosa, quem seja) é bom manter um (dois) pés atrás.
Na arte, não. Acho foda pegar a produção de um artista e arrasá-la, meter o pau sem dó. Via de regra, concordando ou não, olho para esse tipo de arroubo, tido como “olha, o cara fala o que pensa”, “não fica em cima do muro”… e tomo, sem medo de errar, como um grande “QUERO APARECER”. Quase sempre análise radicais são injustas e mostram apenas um lado da “verdade” que se quer impor.
Em resenhas de discos (arte!), acho que o “em MINHA opinião” se faz mais necessário que nunca (é necessário em praticamente tudo, mas aqui ainda mais). “Acredito que”, “penso que”, “me parece” etc. não podem ser vistos como fraqueza, mas sim como uma humildade necessária, que indique “não sou dono da verdade, gosto é relativo, visões são subjetivas”. De fato, acho que uma resenha deveria se ater ao mais OBJETIVO possível (quesitos como estilo, capacidade de inovação, de variedade, intensidade das composições, qualidade dos músicos, etc. – que, ainda assim, não são ciência exata).
E, após, deixar claro que a parte subjetiva assume-se como tal (gostei ou não, é bom/ruim, ótimo/péssimo, clássico/lixo). Mas sem extremos, porque o extremo visa ser polêmico, quase sempre fanfarrão. Para muitos, vê-se nele credibilidade. Para mim, numa dessas, ela se perde completamente.
O “muro” (termo pejorativo) é muito mais crítico e encontra-se numa posição muito mais privilegiada de análise, do que quem se encontra na visão unilateral do céu ou do inferno.
Mas as resenhas são assinadas, em qualquer veículo, de modo que é óbvio que aquela é uma opinião do crítico, é claro que é a opinião do cara, não precisa escrever “na minha opinião”. Mas o mais curioso no seu comentário foi o trecho que diz sobre ser “o dono da verdade”. Acho que essa é uma leitura equivocada. Roubo a passagem do texto de um blogue amigo sobre o assunto: “O erro mais comum, do crítico e do leitor que o julga, mora aí: achar que a crítica tem uma função maior que essa simples e vaga emissão de um ponto de vista bastante pessoal e livre para interpretações. O que vejo, frequentemente, são pessoas que condenam a crítica por achar que o crítico é um alguém que quer impor a elas visões que a elas não pertencem como se fossem certezas, estabelecer verdades sobre a arte, afirmar (com o som de um martelo batendo!) o que é bom e o que é ruim, o que é relevante e o que não é, apenas por se achar inteligente demais e poderoso o suficiente (quase um deus!) para guiar o ingênuo resto do mundo”. (daqui: http://bansheebeattt.tumblr.com/post/51443016401/escrever-sobre-musica-historia-motivacoes)
Olha, até entendo o que você quer dizer (“eu assino, logo é “óbvio” que é “apenas” minha opinião”). De fato, é o argumento usado por quem costuma ser radical nas críticas, mas se sente pouco ou nada na obrigação de justificar seu radicalismo ou debater as ideias contrárias (por favor, não estou falando de você, a quem mal conheço, mas até tenho alguns “críticos” na cabeça).
Mas meu comentário foi em cima da crítica que é radical. E quando se diz, de modo cru (ou com falso rebuscamento), que tal coisa é um “lixo completo” – ou mesmo quando eleva, positivamente, à posição de nova obra-prima da humanidade – está implicitamente dizendo que quem não concorda (quem não vê tamanha obviedade, expressa cabalmente nas palavras constantes da resenha) é no mínimo burro.
Logo, um texto permeado de alguma – a meu ver necessária – humildade (“eu odiei, por isso, isso e mais isso, é minha visão de ver a coisa, baseada em critérios e argumentos revelados no texto… mas tomaria uma breja com você que curte numa boa”), não pode ser considerado ruim por ser “em cima do muro”. É salutar, buscar pontos positivos, uma nova visão, evitar o achincalhamento barato, que cheira à perseguição… e até mesmo admitir que, em última análise, com o tempo, você mesmo pode vir a mudar sua opinião…
veja bem, eu mesmo, no comentário, não quero ditar uma “regra” sobre como fazer resenhas. Eu creio ter razão no que penso, odeio polêmica barata, feita para “aparecer” ou conseguir pageviews… mas são meus critérios para ver se uma resenha foi válida ou bem feita o bastante, se um site é confiável ou não (gosto muito deste!), etc… concorde eu com o que está escrito ou não. Mas você pode ter outro (critério), e outros podem ter ainda outros, etc.
[…] As ruas são espaço de todos, mesmo dos contrários. Não viver com essas diferenças é não dar o mesmo direito de liberdade que pede pra si. Mais uma vez, é preciso entender os meio-termos. […]
[…] positiva e a negativa? Um álbum só pode ser nota dez ou zero? Somos tão oito ou oitenta? Fernando Lopes reflete sobre a cultura dos extremos em “O problema do meio-termo”, pondo em debate tanto a visão do crítico perante uma obra quanto a do leitor diante da […]
[…] o crítico. O texto crítico também é uma obra e como tal merece críticas e observações. É a questão imprescindível do meio-termo: nem tudo ao oito, nem tudo ao […]