“Escute sua cabeça. Questione sua cabeça. Exploda sua cabeça. Depois de encostar a testa no chão, encha o copo e acenda o cigarro de Padilha. Deixe o caos governar a ordem até que as coisas façam sentido novamente. Assopre a primeira nota, deixe ressoar no tempo o tilintar dos pratos. Quebra-pratos, o segundo da casa, o primeiro de três”, diz a apresentação de “Ori” (apresentação essa escrita por Rosa Couto), novo disco da dupla Radio Diaspora, com o inquietante trompete de Romulo Alexis (que teria atestado de “gênio” se tivesse nascido em algum país anglo-saxão).
Ori, nos ensina a Wikipedia, é a palavra da língua iorubá que significa literalmente “cabeça”, e refere-se a uma intuição espiritual e destino. Ori é o Orixá pessoal, em toda a sua força e grandeza. Ori é o primeiro Orixá a ser louvado, representação particular da existência individualizada, a essência real do ser, e não há portanto título mais forte e apropriado pro sentenciamento musical elaborado pelo Radio Diaspora.
“Fim-meio-começo, ou um ponto aleatório na circunferência do Ori cabaça plena de sementes – sinapses? Tanto faz a ordem, o ciclo somente se esvai quando a energia se dissipa no espaço. Etérea, como suor e saliva. Mergulhe e desenterre a clave esquecida no mais profundo âmago de sua lama encefálica. E Deixe que ela dance em seu corpo. Atlântica. Permita-se lobotomizar, separando – num corte – os dois lados do cérebro binário eurocentrado e, então, permita-se ouvir as ondas do mar quebrando ao som da fala de Beatriz, enquanto na areia dançam todas as outras Yabás: Leci, Lélia, Zezé, Denise. O pássaro, o silvo, o ronco, o grito, o ritmo, o pulso, a dilatação sutil do tempo. Tudo cabe, tudo explode no big bang tremendo que deu origem a Ori. Alimente o Ori faminto. Explore sua cabeça. A cabeça é o ventre, o início do mundo. Antepassada do tempo. Ori”, encerra.
Permita-se lobotomizar, enquanto é envolvido pelo trompete de Alexis e pelo ritmo de Wagner Ramos. Problema algum se entregar. O free jazz da dupla (por assim dizer, por ser livre pra explorar os cantos profundos da mente) não o é no sentido clássico do termo. Não: como já nos mostra “Sorte (Das Neves)”, logo no início da obra, o elemento eletrônico tem importância crucial, tanto quanto o pulso, o ritmo, a poesia, a crença e a história por trás de “Ori”. É um Orixá modernizado (e como há modos de inserir a cultura dentro da cultura!).
A cabeça é o ventre e o som é o espaço. Um é o início do mundo, a explosão, a faísca, o outro é o pavio, que carrega o produto imparável a partir daí. Alexis e Ramos não fazem só um disco de contemplação ou de envolvimento. É um comunicado, um panfleto e um salve – e que, pena, pouca gente vai ouvir e se deixar lobotomizar.
Disco de beleza rara, de ousadia rara, de elementos raros, de modernidade rara, “Ori” podia ser a trilha-sonora de um filme dos anos 1960, preto-e-branco clássico, quanto podia ser a trilha da abertura de novas sinapses no seu cérebro, coloridos clássicos de explosão da descoberta e do conhecimento. A viagem pra dentro da própria cabeça ou pela história, pelo êxodo forçado africano (“o desejo de não ter vivido a experiência do cativeiro”), ou pela inquietação da música, do verbo, da sociologia, da dança (ouça “Excesso (Denise Ferreira Da Silva”)), tudo está no que se ouve no disco.
“Ori significa a inserção a um novo estágio da vida, a uma nova vida, um novo encontro. Ele se estabelece enquanto rito e só por aqueles que sabem fazer com que uma cabeça se articule consigo mesma e se complete com o seu passado, com o seu presente, com o seu futuro, com sua origem e com o seu momento ali”, ensina e resume Beatriz Nascimento, em “Ori (Beatriz)”.
“Ori” é o disco que você precisa pra abrir a cabeça.
O lançamento foi via Brava, no dia 8 de abril de 2022.
Todas as composições são de autoria da dupla. As gravações foram no famoso Audio Rebel, no Rio de Janeiro, pode Pedro Azevedo, com mixagem e masterização de Renato Godoy. E a bela capa, de autoria de Priscila Tâmara e Rodrigo Sommer.
1. Aruanda (Leci)
2. Sorte (Das Neves)
3. Ori (Beatriz)
4. Excesso (Denise Ferreira Da Silva) (leia mais aqui)
5. Ogã (Runtó)
6. Baobá (Zezé)
7. Vissungo (Canto VII)
8. Encruza (Pomba Gira)
[…] Floga-se / Disco Novo – Fernando Augusto Lopes – Abril 2022 […]