RESENHA: ABDALA PACHECO – SELVA DE PEDRA

Solitariamente indo dormir, sob a luz de pontos difusos fora da janela – um painel de iluminações alheias e indiferentes.

Não nos deixe acordar com a mesma restrição à vida ou o mesmo medo nos olhos encarnados em visualizações correspondentes a uma velocidade tão incessante em que tudo morre quando inicia, tudo se esvai antes mesmo de marcar uma história. Não nos deixe acompanhando à contragosto toda falta de vida que a noite cala mas o dia insiste em desnudar com sua prepotência esclarecedora e abundante.

Sozinhos encarando uma cidade que se constrói em volúpias aterrorizantes, sombras compostas a partir de edifícios mortos que nos cobrem em pretensão e vaidade, medo e violência. Sozinhos esperando algo acontecer em meio ao falatório, que um filtro de luz (vindo ou de smartphones ou de músicas produzidas ou de salários altos) nos salve da decadência de estarmos arremessados sem nenhuma distinção entre nós e as estátuas fedendo a mijo na cidade grande. Quem pode distinguir o que se ouve entre uma multidão preocupada com o próximo prato de comida na mesa ou a próxima foda ou o próximo trem?

O som que cada um ouve ecoa de maneira diferente, de modo que não é o mesmo som, ainda que tenha as mesmas frequências, ainda que parta da mesma origem física. Por mais próximas que as pessoas estejam, sempre haverá um ruído indiscernível que as separa das outras, um espaço ínfimo que jamais será sobreposto. Seguir essa distinção mínima é tarefa dos músicos pra poder apresentar sonoramente um espaço invisível, mas que existe de alguma forma. Em que ponto os instrumentos se separam e em que ponto eles se encontram pra evidenciar que podem ser distintos enquanto violam a mesma intimidade alheia?

Ou o momento em que toda tradição é apresentada como falsa e os consequentes passos de realinhar uns aos outros seja através da aceitação da efemeridade de cada um. Ainda assim, de onde nascem esses sons e como eles seguem “perdidos” até seus fins? E como eles se ausentam (não se pode ouvi-los), mas ainda assim permanecem ecoando junto aos outros que estão sendo tocados efetivamente?

O que remodula os sons são as experiências, as referências e as ausências de cada um desses itens – nesse limite de remodulação, nós interferimos como cobaias constantes no processo chamado de “ouvir um álbum”. Esse toque é invisível e mais do que distrair, é uma lembrança de que há todo um universo velado inatingível. Ou: há espaço ainda pra se otimizar nesse mundo abundante? Ou como os espaços já descobertos vêm sendo utilizados? Por toque entende-se uma visitação, estar disponível a sonoridades estranhas que possibilitem uma nova forma de agir no espaço em que se está. Ou esses toques desconhecidos apenas possibilitam um novo olhar sobre as velhas figuras batidas?

Nesse limite, Abdala Pacheco cava espaço quando o som proposto é sempre uma emergência. Perdendo-se entre o desconhecido a partir de movimentos premeditados, entranha-se pelas ruas sem saber onde se vai chegar, mas sempre em toque com alguma predisposição internalizada de tentar achar uma localização (GPS? Acordes familiares?) enquanto a espiral convoca pra descida: o abismo em que a separação inicia seu processo e a familiaridade vai mostrando-se fajuta, pois não se conhecia verdadeiramente nada, a não ser uma superfície restrita e limitada.

No entanto, perde-se neste abismo facilmente o discernimento próprio e se é transportado pra um terreno movediço, totalmente incerto, enquanto alguns microrruídos insistem em se fazer presentes. Nunca se vai perder essa conexão – queira ou não, está sempre presa a uma determinação antecedente.

Sons vacilantes que oscilam na sua emergência e no seu recuo. Ou o estresse estendido em “Tensão Superficial/A Desculpa”, cujo falatório convive com dissidentes sons cruzados. Ou o brilho submerso acorrentado por uma superfície que esconde todas as outras possibilidades, enquanto se tenta chegar à ruptura não pra destituir o que já foi criado, mas pra tocar o porvir trancafiado nas armadilhas dissimuladas da metrópole.

Canções que escancaram o conformismo de uma cidade e que tentam chegar numa porta de possibilidades cuja chave, ou o própria trilha, ainda é desconhecida.

1. A Águia E A Baleia
2. Tensão Superficial/A Desculpa
3. Novelo De Luz, Novelo De Trevas
4. Entropilha
5. Selva De Pedra
6. Travessia
7. O Milagre Da Vida
8. Sua Majestade

NOTA: 6,0
Lançamento: 17 de setembro de 2018
Duração: 28 minutos e 55 segundos
Selo: Proposito Recs
Produção: Bruno Abdala e Bernardo Pacheco

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