RESENHA: CADU TENÓRIO – RIMMING COMPILATION

Rimming Compilation: Liquid Sky

Há várias maneiras de descrever a obra de Cadu Tenório. No entanto, quaisquer das descrições que eu usei em todas resenhas que fiz sobre seus trabalhos talvez passariam muito longe das que pretendo usar pra explicitar minha experiência com “Liquid Sky”, uma das partes de “Rimming Compilation”, o álbum-duplo-unitário que ele lançou em setembro de 2016.

Este é um álbum que trata de um catalogo de recapitulações que foram elas mesmas atravessadas por experiências. As faixas apresentam uma abertura maior do que toda sua obra até então; as estruturas estão mais frágeis e tendem a escapar por qualquer fresta ínfima manipulada e criada por Cadu.

Eu li em alguma resenha sobre reinvenção, mas não creio que seja exatamente o termo que eu gostaria de utilizar. A dinâmica de “Liquid Sky” evidencia um interesse absurdo de Cadu Tenório de aprofundamento nas possibilidades mais densas (é um processo de profunda escavação e desdobramentos de sonoridades) e ao invés do repertório de ruídos agressivos mais habituais em suas últimas colaborações (especificamente no Gruta), tem-se texturas mais próximas; elas se formam, ganham corpo, são cortadas. Eu não quero dizer que há alguma influência de Burial no som precisamente, mas o método do Tenório de trabalhar memória e as intervenções que elas sofrem me lembrou muito o “método” do Burial. “Liquid Sky” surge talvez como a coisa mais fora de determinado mundo que Cadu vem construindo. Uma extensão.

Veja o vídeo de “Cyberia (Digital Deathru)”:

“Liquid Sky” apresenta cristalizações intencionalmente semi-construídas, com pontas faltando, repetição de vocais, alteração de volume.

Se os fragmentos sempre estiveram presentes nos trabalhos de Cadu, aqui eles são estranhamente mais abertos a visitações, menos soturnos e às vezes completamente descentralizados. Como um veículo que atravessa centenas de estilhaços de paisagem por segundo – “Liquid Sky” (céu líquido) então faz jus a seu nome, porque ele mesmo é uma interação vasta e acelerada. É uma descrição mais visual, como se a memória tentasse desenhar coisas que ela tem certeza já ter testemunhado. Mas tempo é esquecimento também; tudo se dilui e fica difícil saber o que é um registro mais ou menos exato e o que é invenção ou distorção.

O próprio criador é apenas um instrumento de algo de força maior; uma energia criativa que evoca memórias e a própria capacidade de produzir pra desajustar (ou criar) sua (nova) realidade. Como os ambientes atravessados nos filmes de Tarkovsky, a paisagem de Tenório está fundada no laço afetivo do músico com temas, momentos e melodias que o marcaram. Cadu deixa, então, um testemunho de lugares próprios raramente evidenciados.

De todas as coisas que eu ouvi de Cadu, “Liquid Sky” é a mais acessível justamente pela transformação constante e não pela imposição imediata de certo ambiente. São pedaços soltos que não necessitam de nenhum complemento; eles têm sua própria dilatação, seu próprio tempo. Novamente eu comparo com os filmes de Tarkovsky: Cadu compreende a manipulação que pode fazer com a ideia de tempo, então ao arrastar certos momentos ele nos joga em sua subjetividade e um tempo “novo” é criado. Diferente das imposições tão categóricas nos mais diversos tipos de música eletrônica, a modulação de Tenório envolve o ouvinte, não sem certa comédia. “Liquid Sky” se torna, com o passar do tempo (e olha que eu ouvi muito esse álbum pra escrever isso aqui) um enigma envolvente justamente por sua fluidez, pela sua não imposição.

A localização deixa de ser uma questão e evapora porque a referência (o céu) não serve mais pra ser referência de nada. E talvez seja isso que deixe muita gente confusa na audição do álbum. Mas só talvez. Porque “Liquid Sky” só poderia sair em 2016 e só poderia sair de uma cabeça como a de Cadu Tenório.

É um terreno não neutro, em que as mutações celestes mudam a referência a todo instante, sendo elas mesmas disformes. Se as paredes sonoras foram derrubadas e/ou deixadas de lado é porque Cadu avança no terreno de criador e aqui, com sua vasta capacidade manipulativa, se lança ele mesmo pra estetizar mudanças que estranhamente compõe sua unidade.

01. A
02. Cyberia (Digital Deathru)
03. Nozsa Wars (clique aqui pra ver o vídeo)
04. Star (clique aqui pra ver o vídeo)
05. Pirease
06. Death In Midsummer
07. Enter The Void
08. 玄野 計
09. Mima
10. アスカ
11. 2300 AD
12. Z

Ouça na íntegra:

Rimming Compilation: Phantom Pain

Depois do convite até atraente que é “Liquid Sky” (lembrando que você pode começar por qual disco quiser), “Phantom Pain” surge certamente grotesco, repugnante e ousadamente invasivo.

É como se seu aspecto pornográfico (a primeira faixa tem literalmente um sexo rolando – o próprio título do projeto é explícito: “rimming” é uma prática… bem, vá ao Google) destituísse-nos de qualquer subjetividade possível. Ou melhor: pra aceitar o desafio que é “Phantom Pain”, nos igualamos às obsessões do Cadu mesmo que momentaneamente. As colagens, a resistência do elemento repugnante, as ofensivas degradações de “Phantom Pain” produzem qualquer coisa menos a indiferença.

Se em “Liquid Sky” era frequentemente fácil se perder, em “Phantom Pain” estamos em um estreito corredor com um caminho mais determinado, porém encarando nossas maiores perversidades. “Phantom Pain” se estende como as armadilhas carnais não apenas pra atrair o ouvinte, mas pra fazer este observar num espelho seus inúmeros demônios internos ganhando vida. Apesar das diversas colagens e sonoridades, é como se não tivesse avesso, é como se o oposto a este asco lançado simplesmente não pudesse ter vida nesta Terra. É bucólico, é asqueroso, é atraente.

Nada, em nenhum dos dois discos, é previsível. Apesar de eu ver uma linearidade maior em “Phantom Pain” (errata, não há linearidade alguma), suas progressões não guardam nada do senso comum, nem puxam pra um discurso único. É realmente sádico às vezes, mas é impressionante como o músico consegue se debruçar sobre tamanha perversidade e distribuir sons tão diferentes.

Os vários atos carnais sugeridos por “Phantom Pain” talvez sejam uma afirmação mais terrena e menos transcendente. Eu não consigo ver como o oposto de “Liquid Sky”, mas se em um há a altura e o impossível (céu, memórias), em “Phantom Pain” há uma descida vertiginosa a elementos mais concretos e objetivos – não só o nome sugere isso, mas a agressividade deste álbum junto como uma tensão onisciente exploram coisas que parecem atrair primeiro o físico, enquanto em “Liquid Sky” percebi um tratamento evidente sobre a memória.

Lógico que não é e nem poderia ser tudo dicotômico, mas o subterrâneo permissivo de “Phantom Pain” é uma caminhada certeira em algo evidentemente concreto. O drone poderoso que a primeira faixa vai se transformando, se desenrola numa hipertensão que parece suprimir pensamentos associativos e apenas deliberar uma espécie de paranoia. Este estranho contraste com o som mais floreado de “Liquid Sky”, a continuidade mais claramente estabelecida – sem dúvidas “Phantom Pain” encontra na dor um modo de afirmar-se terreno.

(a resenha pode acabar de ser lida aqui, o que virá mais abaixo é um puro testemunho de minha experiência.)

Pra, a partir daí, a segunda faixa destroçar tudo o que eu projetava em “Phantom Pain” e eu dar adeus de verdade à continuidade que eu pensava que essa parte encerraria. Lógico, observando mais atentamente, “Phantom Pain” é como um compilado de faixas que se justificam sozinhas, mas elas ainda assim estão num todo (um disco duplo, no fim das contas) que é cristalizado na ambientação realmente perfeita de “I Am A Sinner”; ela reconstrói um ambiente lúdico que eu tive a sensação de ser recuperado de partes perdidas de “Liquid Sky”, como se tudo o que esse álbum ameaçara formar tantas vezes (e de tantas formas!) se encaixasse aqui. E não me refiro às sonoridades, mas sim a uma apreensão mais precisa e concisa.

Numa narrativa totalmente inventada por mim ao ouvir o disco, é como se ao cair no pântano da primeira faixa de “Phantom Pain” e assumir essa condição asquerosa e aceitar seus pecados (” Am A Sinner”) ele pudesse tratar da matéria que o formou de maneira mais concisa, mais idealista talvez.

Porém, esse mero alívio é interrompido por um sofrimento quase sacro em “Music For Airports (Airplanes, Hope And Sadness)”, que recorre a uma turbulência imponente em todo seu desenvolvimento. São tantos os elementos nessa faixa e é possível sentir tanta coisa nela, que eu percebo o quanto de coisas os discos já me fizeram sentir que eu acabo ficando realmente de boca aberta.

O que existe no disco é um músico que manipula suas intenções e sabe quando imputar em sua arquitetura um elemento maior de vazão contínua (“LOVE (And Everything In Between)” é outra peça com uma construção cuidadosa e menos instável que a anterior).

Em retrospectiva: atravessar este álbum duplo é reagir a diferentes níveis de inquietações que são elas mesmas expressas em diversas sonoridades (continuidade, corte, cânticos, ruídos etc.).

Há uma obsessão evidente em Tenório que não consigo catalogar mas este não é precisamente o ponto. O ponto é que essa determinação e ambição alavancam uma construção sonora muito interativa ao mesmo tempo em que é um desafio declarado ao ouvinte e às formas usuais de produção musical. Dentre toda a calma que, à sua maneira, vinha sendo construída em “Phantom Pain”, surge a última e dilacerante faixa. Ela é crua, apavorante: berros, ruídos inextinguíveis – é como a saturação do elemento que na primeira peça do disco ameaçava conceber.

Quando ao final destes dois álbuns estamos novamente em um ambiente mais calmo, percebe-se o tanto de paradoxos que Cadu Tenório estabeleceu em todo o trabalho. Estamos, no fim das contas, em um espaço confinado. Tenório sabe dos limites artísticos. O que não invalida absolutamente nenhuma experiência nesses discos – é um dos atravessamentos mais poderosos erigidos na música contemporânea.

1. Goodness Is Only Some Kind Of Reflection Upon Evil
2. I Am A Sinner
3. Music For Airports (Airplanes, Hope And Sadness)
4. LOVE (And Everything In Between)
5. Destroying Everything (Grindcore)

Ouça na íntegra:

NOTA: 10,0
Lançamento: 6 de setembro de 2016
Duração: 95 minutos e 52 segundos
Selo: Brava e Sinewave
Produção: Emygdio Costa e Cadu Tenório

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