Cadu Tenório já é conhecido no Floga-se por toda a percepção radical que suas obras têm inserido na música contemporânea. Thomas Rohrer não fica atrás (é menos conhecido pelo público específico do site, talvez) e a colaboração entre os dois resulta em uma ambientação densa.
Muitos ecos e barulhos distorcidos resultam num incômodo estranhamente atraente – são distribuições sonoras que têm um epicentro tangível no meio de todo o desconforto da audição, algo decididamente obscuro à espera de ser desvelado (ou que tentamos desvelar, ao menos). Atrás desses ruídos viciantes, há a sensação de um porvir, e é nessa espera asfixiante que na segunda faixa submerge uma espécie de anti-aparição sinistra. É como se nossa percepção estivesse deturpada ou antecipássemos o pressentimento de estar na presença de um objeto deturpado.
A ênfase que eu quero registrar é de como três sessões de livre improviso (das quais apenas duas foram utilizadas) não passam ao receptor (eu, no caso) a sensação de uma construção “instantânea”. Mais do que isso, ao visitar o mundo de “Fórceps” (ouça na íntegra aqui), me senti num ambiente pressentido que tantas coisas são invocadas (assombrações, cânticos, rangidos) e transformam-se elas na matéria de nossa própria memória. Ou melhor: elas são os elementos que associam nossas memórias. Elas são os elementos que atacam o ouvinte e exigem dele qualquer tipo de reação.
A dificuldade de elementos desconfortáveis e cortes bruscos residem em estratégias sonoras que formam uma parede muitas vezes intransponível (a terceira peça, por exemplo) em que fica mais evidente a aplicação do termo “livre improviso”. Talvez isso seja o maior exemplo da não reprodução de nada anterior – pois “Fórceps” é o encontro entre duas experiências e percepções que caracterizam a formação de um novo terreno. Porque talvez seja ainda difícil pro ouvinte que vos escreve acreditar como tantas disparidades (uma espécie de ópera no auge da distorção, por exemplo) são originadas da intuição de dois artistas, proporcionadas por este encontro, somadas às experiências anteriores de cada um deles. É como se a construção não pudesse adquirir tal qualidade (de ser construído) pois ela é resultado da instabilidade contínua dos dois. E por isso certa facilidade de se ficar relativamente perdido nela; pois o hábito às formas pré-concebidas (ainda que nada seja puramente eventual) usualmente declina um convite mais participativo e perceptivo como é “Fórceps”.
O que ambos moldam aqui é um disco autêntico que evidencia muito mais do íntimo deles do que alguém pode pensar no primeiro momento; porque “Fórceps” não invoca o espaço construído (chame isso de “identidade”) e sim quem de fato os músicos são (em um sentido de exposições de fenômenos internos; memória, intuição, inclinações estéticas). Deve haver na música em geral mais do que uma melodia que simplesmente marque em nossos ouvidos. Deve haver um processo de investigação que pode criar um lugar de compartilhamento de coisas anteriores à concepções.
“Fórceps” é convidativo neste sentido; o disco permite que o ouvinte seja transformado reativamente por sua audição. Os momentos calmos não são necessariamente calmos (quer dizer, eles não servem para relaxar) mas sim evidenciam o pressentimento dum mergulho denso e incisivo. Tudo se torna sonoridades fugidias cortadas bruscamente.
Talvez a gente ainda esteja muito acostumado a um mundo de referências e talvez nos percamos sem elas. “Fórceps” está aí pra comprovar que as reações ainda são provocadas pela falta de insinuações explícitas (num plano racional).
—
NOTA: 8,0
Lançamento: 31 de março de 2016
Duração: 31 minutos e 30 segundos
Selo: QTV
Produção: Renato Godoy, Yago Franco e Pedro Azevedo