Já faz muito, muito, muito tempo que não tenho quatorze, dezessete, vinte anos. Esse distanciamento nos coloca numa situação de desprezar e ser desprezado, no velho “choque de gerações”, uma guerra inútil, diga-se, afinal todo mundo envelhece e todo mundo que envelheceu um dia foi jovem, com basicamente as mesmas angústias, frustrações e desencantos.
Julia Soares, a Cansei De Rigby, hoje uma universitária, já começa a olhar com certo distanciamento sua adolescência, mas ainda com um prazer contido. Seu primeiro EP, “1417”, mostra quatro canções escritas nas idades de quatorze, quinze, dezesseis e dezessete anos.
É um mapa do crescimento biológico e amadurecimento social. Embora com a distância de umas boas décadas seja possível perceber que dos quatorze aos vinte pouca diferença existe, não é de se menosprezar que durante a vivência nessa época de descobertas (que invariavelmente destroem certezas e, por isso, alicerçam frustrações) a gente se empolgue com um provável amadurecimento. Um ano faz toda a diferença nessa fase da vida.
Entretanto, Julia Soares parece olhar mais com carinho do que com algum tipo de embaraçamento. Talvez seja por perceber que certas atitudes e pensamentos nessas idades são mais reflexos de verdades em construção do que propriamente teses assertivas sobre a vida. Há um sofrer justo, o sofrer da incompreensão, da dependência (dos pais, que são uma autoridade constituída e daí resultam as primeiras diligências rebeldes), da falta de amor, do medo do sexo, do temor do mundo traiçoeiro e perverso lá fora, de tudo o que é desconhecido, o que é nesse caso quase tudo, embora o adolescente acredite que esse tudo é exatamente o que ele sabe.
A artista aqui não desenvolve muito sobre o tema – são, afinal, só quatro canções – mas o pouco que expõe já se mostra suficiente como recorte de estudo (um estudo a ela própria, que seja). Em “Arma Na Mão”, ela fala sobre ser incompreendida e ser julgada o tempo todo – o adolescente costuma se achar o centro do universo, é natural – e isso vem com versos bastante felizes, como “Não consigo mais aguentar / Esses tiros que eu levo / Sem ver ninguém / de arma na mão” e “Eu gastei os meus momentos / e não vi passar no tempo / E agora estou aqui pra viver, sofrer e morrer / nada vai mudar se eu me cegar”, o que carrega uma amargura impressionante pra quem tinha quatorze anos.
Em “Você Ainda Liga Para O Que Dizem”, a guitarra cortante e a voz doce por trás das distorções cantam versos de uma menina de quinze anos sobre os primeiros amores. Num mundo idealizado, puro e inocente, é esse o curso: meninas pensam nisso e meninos pensam em baderna, até por isso as meninas idealizam paixões com garotos mais velhos. Os versos são interessantes, embora longe de serem originais (quantas vezes você já ouviu algo como “Eu poderia roubar um carro / só pra te levar em casa”?).
As letras das canções dos dezesseis anos e dos dezessete são em inglês, sem uma explicação qualquer (não que precisasse, evidentemente). “Out Of Feeling” tem uns barulhinhos e uma pegada meio saudosista. Soares avisa que não veio ao mundo a passeio. É uma matada no peito, uma confiança que os jovens têm aos montes e que vão se esvaindo, infelizmente, com o passar dos tempos.
“Hold It Tight” é um roquinho adolescente, literalmente, que ela mesma descreve com uma tocante melancolia: “aos 17 eu estava deixando toda essa vibe de confortos, de final de colégio, de novos projetos musicais e também de novos erros, novos acertos. É só sobre sair, ficar bem; dar um tempo e segurar a barra”.
Julia Soares é da banda Super Amarelo (leia e ouça aqui) e “1417” da sua Cansei De Rigby é um projeto de resgate bem pessoal. É seu diário musical, seu olhar pro crescimento.
Por ser um disco muito pessoal e caseiro, ele soa amadorístico demais, mesmo se tivesse sido essa a intenção. Julia Soares fez tudo: tocou guitarra, baixo, teclas, escreveu as letras, cantou, produziu, gravou, mixou e masterizou. Teve pouca ajuda, como a de Marcos Cajueiro, da Super Amarelo, no baixo de “Hold It Tight”. É porque tem que ser assim mesmo. Só ela pra entender o que ela passou, quais suas agruras e suas expectativas.
Só ela pra entender o alívio que é olhar pro passado, recente ou não, saído do forno, e enterrar os fantasmas pra poder encarar o futuro. Todo mundo enfrenta essa fase. Alguns passam pra próxima etapa com uma aparente naturalidade, com feridas não curadas que podem se agravar lá na frente, seja na forma de rugas, seja na forma de um envelhecer amargo. Uns outros refazem suas personalidades pra se tornarem pessoas melhores, usam a fase como aprendizado. Outros transformam tudo isso em arte e ganham dinheiro com isso. Já Julia parece ter escolhido ganhar tranquilidade e conforto. Ela pode olhar com carinho pro que produziu: sua adolescência é o retrato da adolescência da maioria das pessoas, mas são poucas as pessoas que conseguem deixar isso por escrito, em notas musicais, pra sempre.
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1. Arma Na Mão
2. Você Ainda Liga Para O Que Dizem
3. Out Of Feeling
4. Hold It Tight
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NOTA: 6,0
Lançamento: 17 de fevereiro de 2018
Duração: 16 minutos e 14 segundos
Selo: Independente
Produção: Julia Soares