A resolução de Elysia Crampton é drenar uma tradição que abarca tudo que ela atravessa. Outros tomam nota do presente e tentam reviver suas experiências através da mera conceituação; ela tem a noção de que música conceitual pode cair na abstração e por isso sua música é essencialmente corporal.
Elysia Crampton compõe uma música que permite a tradição e a transição, proporcionando memória e cultura, rebelião e homenagem.
Isso significa eliminar as fronteiras do gênero e perpetuar um fluxo que é um recorrente desencontro enquanto, ainda assim, permite a articulação entre tempos/estados diferentes. Compondo com a noção de legado e rompimento, ela consegue flutuar entre frequências muito difíceis de serem transpostas. Não é difícil ouvir o conflito no decorrer no disco, não é difícil perceber a tensão das bases arrastadas e pesadas e os sintetizadores sinalizando urgência, um chamado. Talvez nós consumirmos essa algazarra toda não seja algo tão problemático assim, ela apenas propõe deixar de lado a catalogação nítida pra homenagear e desafiar os sons que lhe dizem algo. Talvez foi o que a maioria dos artistas mainstream perderam enquanto, através de algoritmos, esqueceram-se de que a memória afetiva comercial é facilmente rompida quando alguém consegue colocar dança tradicional, resistência trans e acumulação capitalista em perspectiva simbólica que, com a incrível animação do disco, aliena os sons que dizem que a resposta pro sintoma X também está localizada na origem Y. Nada é autorrepelente.
Elysia Crampton, uma vez que começa a sua manipulação, não para até que o ouvinte esteja exaurido em ondas constantes que sempre continuam de outra forma e, quando se percebe, está convivendo-se com outra incorporação enquanto as experiências iniciais ainda tomavam corpo. Vem tudo de uma vez (um exemplo vem sempre carregado de outras matérias e resquícios, são os pequenos sons que possibilitam a interligação entre as mais diferentes temáticas. Tudo é abertura. Depois que se percebe isso, assimilar os sons para de ser referência e o que é ouvido torna-se receptáculo de exterioridades que vão conviver com as impressões primárias, sempre se moldando. Depois de hospedar a ruptura da linearidade, a composição não busca mais romper nada: é o transe entre o que se vê e o que se sente, como se esses polos entrassem em uma espiral de abstração que vai significar sempre uma experiência de imanência e chegada. Nós começamos a sentir uma aproximação, que parecia vedada, com a era digitalizada: os sintetizadores escancarando um chamado enquanto a ambiência eletrônica desenha constantemente esse porvir. Nada era “ruim” porque em cada manifestação havia uma potencial aproximação, em cada gesto convidativo havia a cocriação. Nós criamos uma comunidade com o ambiente com o qual nos deparamos, estávamos sempre chegando a algum lugar. Esse trânsito existe até hoje, porque a acumulação não cessa).
A descrição do ex filósofo Nick Land do processo capitalista de artificialização da Terra em que nada humano “vai nascer no futuro próximo” é desafiada pela imposição rítmica, quase tântrica, de uma artista que vê outras possibilidades quando a estrutura totalizante do capital abraça todo o planeta. Nick exclui os processos de intimidades gerados desde o nascimento e que recorrer à incorporação de elementos externos pode, sempre, ser um gesto criativo e afirmativo do “vir a ser”. O comportamento da produtora discorda radicalmente dessa aceitação impositiva e por isso unir tantas reivindicações na música: não apenas pra contestar um espaço que é seu por direito, mas pra criá-lo a partir do que parecia morto. A familiaridade conquistada nunca vai desvanecer e, quando exposta ao exterior, ela não vai ser alergia pura – mas sim criação e apropriação (e a música é interrompida por assombrosos layers que sempre permanecem embora outra transição já tenha sido realizada. A primeira vez que ouvimos os sons nunca vai ser verdadeiramente uma originalidade, pois nos deparamos com as estruturas sonoras carregando a bagagem de quem fomos e do que pensamos poder ser).
A música aparelha movimentos repelentes pra ser, ela mesma, um processo contínuo de reincorporação.
Como se, com os acenos iniciais, não fosse possível apreender os sons e construir um espaço conjunto. É necessário repeti-los exaustivamente.
O gênero de música que através da repetição de diferentes referências estimula um engajamento capaz de promover uma emergência do que parecia inerte. A música que combina sons digitalizados com influências latinas e reclama atenção tanto pro que está ao lado de fora quanto pro que pode emergir do ser.
Há alguma coisa ao pensar o espaço como forma de criação, Juliana Spahr entende a localização como “uma memória encorpada e incorporada… um espaço materialista temporal e espacial da co-produção do sujeito”. Que esse tipo de música negue as fronteiras do espaço que habita pro espaço que cria, como se o exterior e interior fossem fontes de uma mesma subjetividade alegórica, não é incomum.
De fato, possibilitar um mundo próprio que ascende e queda em seus próprios movimentos é que permite ao ouvinte se localizar no mundo “real”, como a artista que lida com essa questão é que reposiciona o humano como centro da experiência e mediação de forças contrárias. A abstrata “natureza humana” não é algo inerte ou idealizado ou passível de apreensão, mas é na mediação constante entre futuro e passado que o ser humano ganha tato, conhecimento, medo, certezas etc. (a música cria a partir do silêncio e é criada sem precisar demonstrar nada, mas com muito a dizer, pra revelar sensorialmente a estrutura do “nada” a partir do qual os sons nascem).
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1. Nativity
2. Solilunita
3. Oscollo
4. Pachuyma
5. Orion Song
6. Moscow (Mariposa Voladora)
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NOTA: 8,0
Lançamento: 27 de abril de 2018
Duração: 18 minutos e 47 segundos
Selo: Break World Records
Produção: Elysia Crampton