RESENHA: ESMECTATONS – DEFORMIDADE JOVIAL E OUTRAS HISTÓRIAS

“Em outras palavras, captar o poder na extremidade cada vez menos jurídica de seu exercício”.
– Michel Foucault

“Mas se é assim, então é questionável se temos o direito de apreender os organismos como instrumentos e máquinas”.
– Martin Heidegger

Esse desejo de condensar as experiências e evidenciá-las como diferenças que caracterizam um posicionamento radical no mundo. Expor-nos a um mundo que é sempre ruptura enquanto todas as possibilidades são justapostas sem continuidade. Gerar sons estranhos baseados na distorção da prática formal. Passear por deformidades rápidas, que se insinuam e se transformam em outra coisa, que carregam consigo traços iminentes dos locais por onde passaram. Impedidos de ver algo com clareza, tudo ao mesmo tempo é deformidade. A vertigem passada com a chegada de um breve momento de sossego. “Deformidade Jovial E Outras Histórias” alarga seu território continuamente a ponto de ser intangível andar por ele sem cair em algumas de suas várias armadilhas. A síntese de transitar no acidentado, em que não se sabe mais o que é asfalto ou rachadura. Sofrendo todas suas vertigens de uma vez. Aquelas que vêm sem aviso, que chegam aniquiladas no momento exato de seu clímax. Ligadas ao espanto como forma de sobrevivência e do desaparecimento como seu destino inevitável.

Mesmo depois de várias ouvidas, “Deformidade Jovial E Outras Histórias”, apesar de todo o excesso, carrega consigo algo de instável, como se a abundância de destroços escondesse algo inacessível a ouvidos nus. Os atos rápidos passam, destroem e o que resta é indiscernível. Eles desejam te ambientar, “Um Tumor Em Forma De Guri”, ou apenas rir de você e talvez deixá-lo desconfortável, “Maho Shoujo Wanderlei Capítulo 1: Contrato E Transfomação”. Por vezes existirá algum conforto depois de uma repetição excessiva, “Márcio Ataca”, pra depois rir de você por ter se permitido tal acomodação, “Gonorreia”. Diferentes esboços de sensações transitam sem se afincar. Irregularidades. Chegam sem conformidades, sem oferecer assentamento. Devorando o que elas mesmos criaram (ou rascunharam).

De modo algum esses excessos configuram um problema, afinal eles são o alvo em constante diluição no álbum. Um organismo cibernético metamorfoseado e rasgado em cíclica renovação, em que a amplitude aparente fecha-se enquanto se avança no disco (as intenções não são claras, a ideia é fazer algo progressivo ou dinamitar qualquer possibilidade de progressão? Como é possível vivermos a instabilidade se a sensação de tensão não perdura?). A autenticidade é fundamental pra experimentar algo tão complexo. Como os cantos submersos da nona faixa, tão arremessados que parece que a ideia é apenas o arremesso, apenas apresentar isso ao ouvinte junto com outro trilhões de sonoridades bruscas. Mas eles vem já negligenciados pelos criadores, eles já nos foram sabotados desde o começo porque sua origem está perdida e sua imanência não carrega explosão suficiente pra nos desestabilizar.

O que é vago não causa nada a não ser indiferença. Os próprio precedentes do disco atestam isso. “Pejorative Songbook” (2018, ouça aqui) contava com uma dimensão épica e apresentava o alvo de sua implosão e inquietação, residia ali uma contestação contra a burocracia musical e uma impaciência ressonante em todo o álbum; “Deformidade Jovial E Outras Histórias” baseia seu desmantelamento em muitas aleatoriedades, parecendo um combinado bem-intencionado de possíveis retaliações, ou seja, é uma possível ameaça.

A hipótese de possível ameaça é confirmada quando as viradas – tão agressivas no antecessor – aqui, em sua maioria, são engraçadinhas. Realizando essas piadas, a transgressão fica agradável e sua assimilação é como aquele colega de trabalho que deixa a rotina menos cansativa. É escapismo. Vantagem: esse rondar silencioso em torno do incômodo ainda carrega muitos, muitos mesmo, elementos que revertem cada microestrutura das faixas. Desvantagem: não alcança o ouvinte, parece um painel de muitos elementos estranhos que só atordoam eles mesmos. Admitir que os elementos só espantam eles mesmos é confirmar que eles poderiam ser sensoriais, afinal formar o caos a partir dos estilhaços continua sendo uma relação entre quem cria e quem ouve.

A repetição cortada por ritmos completamente opostos conserva os melhores momentos do Esmectatons. A confusão abriga muitas potências, que se microimplodem enquanto uma repetição desarticula o eixo e deixa tudo em movimento (como a faixa título deixa evidente uma dissipação total, potencializada por alternâncias entre o ritmo circense e uma bateria de black-metal). É por isso que a banda beneficia os cortes bruscos e sobreposições de maluquices, porque, embora o potencial de criar algo formal seja evidente, essa automatização de “música tradicional” interromperia o que ela tem de melhor: desarticular o ouvinte. O público inteiro pode ignorar essa potência, mas se contorcer, enquanto a ideia reinante é ficar estático, evidencia o desconforto e a tentativa de superá-lo. Simon Reynolds acertou quando disse que entre “(…) tantas doenças e disfunções sob o capitalismo tardio, a fonte da desordem não é interna ao sofredor, não é culpa dele ou dela; é causado pelo ambiente…”. O que “Deformidade Jovial E Outras Histórias” insinua que é tudo interno, que a inconformidade tem de ser um grito próprio e dane-se se não se relacionar com contexto algum.

Ser pura individualização auxilia no desencanto contra o automatizado, mas também depõe a favor de uma manifestação autorreferente. Pela razão de que o artista pode identificar as forças invisíveis da esfera na qual habita e depor a favor ou contra ela, que dar um grito individual pode parecer apenas performance. As melodias não têm de ser coerentes ou simbólicas. Nós estamos ativos no campo de “Deformidade Jovial E Outras Histórias”, reféns das referências mais evidentes (The Fall, vanguarda paulista) e a técnica virtuosa do Esmectatons de reverter situações, da própria reversão ser o padrão “antimusical” deles. Relatar o percurso insinuante do álbum seria descrever uma descontinuidade por cada linha, como se você estivesse assistindo a algo que sabe que é fascinante, mas você não consegue se misturar ao fascínio. Somos intermediados pela agressividade, pelos risos, pelos berros, mas o que isso possibilita em nós? Quando concluído “Deformidade Jovial E Outras Histórias”, e escuta-se o álbum de novo e de novo, a impressão questionadora perante a primeira audição mantém-se; ela não é nem endurecida, nem diminuída. Não dá pra ficar obcecado como em “Pejorative Songbook”. Aliás, essa falta de obsessão que completa as lacunas do disco com recursos irônicos ou cínicos. Como perder a afinidade com um amigo e tentar manter a amizade utilizando conversas antigas que não têm o mesmo poder anterior. Como um jogador que tinha na velocidade seu principal triunfo e, atingindo certa idade, não consegue mais dar os piques, mas ainda assim insiste. Como as marcas que deixamos com os amigos virtuais, ao interagir várias vezes, e perceber que nada daquilo do que se trocou vai suportar mais do que algumas horas. Como as conversas fragmentadas que captamos no metrô lotado.

Como observar músicos “fritando”, tendo plena certeza do engajamento sincero deles, e ainda assim desconhecer os caminhos de acesso àquele sentimento. Os “elementos escondidos” evidenciam-se: envolvendo toda a algazarra e todas as fritações. Quebrando algo, é claro. O Caga-Brownies de Aluguel. O Mindbreak. O Mark E. Smith. Os Corpos Cavernosos. A casca do real sendo retirada e sendo substituída por autorreferências. Milhares de vestígios simulando uma caça, simulando uma ruptura.

A falta de obsessão deprecia o escândalo que esse disco poderia ter sido. Porque parte do que caracteriza os vestígios são os traços marcados na pele, não conseguir aferrá-los é a fraqueza do Esmectatons. A totalidade dos cantos em outras línguas e as ausências de refrões e a repetição progressiva mal gravada e a música semioriental sendo embalada por um baião rítmico. A eficiência revertida também consegue ter o mesmo efeito aceleracionista da música pop quando a consequência é acolher catástrofes e não dinamitar com esse excesso. É bastante coisa e nessa multidão também caminham assombros.

Em que lugar isso vai terminar é impensável. Em um local diferente, isso é certeza. A massa sonora cuja pretensão é somar elementos, somar interpretações, somar risadas, somar escatologias, somar palavras de baixo-calão. Depois, mais somas ou a erradicação? As multiexpressões anulando qualquer possibilidade de expressão. A expressão que desconfia de si mesma. Algumas expressões te atraem, outras te afastam – poucas perduram. Os vestígios ignorados da existência. Atrás das circulações online, atrás da obsessão por entretenimento inteligente: os jorros digressivos sobre nada em particular, o tédio ativo enquanto se faz algo sem querer fazer nada.

Em que lugar isso vai terminar permanece impensável entretanto. A situação é que é difícil estipular alvos, sequer imaginá-los, quando se trata de “Deformidade Jovial E Outras Histórias”. Seu vigor depende justamente de cada estilhaço, logo somos intermediados por eles e estamos atrás de uma brecha. Nas faixas, encharcadas de sobreposições, falta algo que não se consegue precisar o quê, justamente porque tem muita coisa (quem sabe essa faixa vai conseguir deformar algo ou talvez o retorno anunciado nesta outra vai nos fazer rir ou, quem sabe, emocionemo-nos nessa homenagem?). Algumas impedem o acesso, outras são pura entrada sem construção.

É um jogo complicado esse de ser sempre outra coisa. Falta-nos tanta coisa, tantos meios de compreender a brevidade e algo brotar dela. Os shoppings são os infernos do consumo vivos, queimando em ânsia de puro visual, pura superfície: as cores demasiadas incapazes de borrar a experiência, porque elas acumulam uma porção de sentidos que não dizem nada. Há algo de imperceptível neles ou apenas loteiam-se de agressões visuais pra preencher um espaço vazio? As faixas que estão na sua cabeça porque a música do shopping é tão inofensiva que fica de segundo plano a algo que flerta com o imaginário. A rede que está sempre carregando, embora você já esteja na outra aba e a pagina à sua esquerda e à sua direita serão fechadas sem que você saiba porque as abriu. Quando sua visão cessar e o sono chegar, do que você vai lembrar?

01. Mindbreak: Dalla Depressione Agli Occhi Strabici
02. Hunting Season Is Open
03. Pissing Me Off/I Am Mark E. Smith
04. 豚肉: あの ね ぼく ね
05. 豚肉: Happiness (Picky Picnic cover)
06. 豚肉: 無残絵
07. Corpos Cavernosos
08. Deformidade Jovial
09. おもちゃのエログロナンセンス夜
10. O Retorno De Padilha
11. Para Isabelle Adjani
12. この野郎!
13. Rogan Gosh
14. Variations Over Esmectatons Leitmotif #1
15. Pão Com Cera De Ouvido
16. A Indecisão De Antunes
17. 君が代
18. Deixei De Fumar
19. Run Amok/Beramok
20. Bola Do Saco
21. The Cry Of The Calopsita
22. Variations Over Esmectatons Leitmotif #2
23. Um Tumor Em Forma De Guri
24. Maho Shoujo Wanderlei Capítulo 1: Contrato E Transfomação
25. Maho Shoujo Wanderlei Capítulo 2: Too Many Plot Twists
26. Maho Shoujo Wanderlei Capítulo Final: Judeu Por Acidente
27. Mulher Pelada
28. Eat Your Fish (Ptôse cover)
29. Márcio Ataca
30. Gonorreia
31. Fio Terra
32. Deformidade Tofranil
33. Um Garoto Chamado Letício
34. InterLurdes
35. アヘ顔!
36. O Caga-Brownies De Aluguel (Featuring Gregory Jacobsen)

NOTA: 6,5
Lançamento: 10 de abril de 2018
Duração: 39 minutos e 13 segundos
Selo: Independente
Produção: Esmectatons

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