RESENHA: GOD PUSSY – ABNEGAÇÃO FILANTRÓPICA

Apenas um espaço que admite transformações pode agir como elemento revolucionário em seu meio. Entende-se “revolução” não qualquer panfletagem idealista, mas por procedimentos retalhadores que evidenciem novos espaços passíveis de exploração. Essa é uma das estratégias avançadas que movem o ouvinte pra cantos que ele ainda não visitou, mas cujos prenúncios sempre existiram em algum lugar. Algumas ciências (seja a filosofia, seja a psicologia etc.) conseguem evidenciar teoricamente os espaços múltiplos quando uma movimentação originada em um microuniverso ocorre. Pro God Pussy, é evidente que a retaliação de determinado sistema vigente (e aí pode-se destacar os discursos socialmente marginalizados inclusos nos outros álbuns) é uma operação que, ao mesmo tempo, reclama por um espaço enquanto paralelamente cria um novo habitat. A existência dum local em si não facilita o acesso ao mesmo. Pra tanto, um evento (no caso, musical) deve carregar o ouvinte pra tal espaço. É como se estivéssemos cercados por edifícios dominantes gigantescos que cobrissem a visão e através de toda “Abnegação Filantrópica” estes fossem caindo.

Eventos acontecem quando é rompida a extraordinária ordem das coisas. Se eles são conhecidos e lentamente acinzentam seu conteúdo explícito, é porque um processo radical transformou (ou revolucionou) seu interior. Pro God Pussy, no entanto, eles não tem uma base determinada ou método racional pra chegar nesta transformação. O God Pussy atinge esta revolução por meio de processos que se multiplicam enquanto a construção de “Abnegação” se evidencia pro ouvinte como um objeto de demandas radicais.

Estas proposições radicais por parte do God Pussy revelam-se através de um discurso bruto e aberto pra se expandir. No entanto, este processo de contínua expansão não seria possível sem uma base pré-determinada em que ela ocorre. Entende-se esta base como “mundo” ou “realidade objetiva” – enfim, é através dos processos exteriores que o músico internaliza suas representações modificadas. Mais ou menos como se o conceito de mudança representado por todas as dissonâncias neste trabalho fosse concretizado em uma não-repetição ruidosa e muito barulhenta.

O problema da evidente dificuldade proposta pelo disco é, no fundo, o embrião da transformação proposta por seu criador. Finalmente, então, o problema deixa de aparentar uma suposta dificuldade e estabelece pro ouvinte a dimensão poderosa que é este disco. Ainda assim, em “Abnegação Filantrópica” (o primeiro trabalho lançado pelo God Pussy em 2017, logo seguido por “negerplastik”, que você ouve aqui), o poder esconde um fácil acesso – é através das mudanças abruptas e das sequências em que o caos se instala que estamos mais próximos da criação de algo.

A análise do God Pussy sempre foi condicionada por uma visão periférica e polifônica. Estes mesmos elementos aparecem aqui como um caos que pretende reorganizar um mundo em que nada mais de “novo” parece ser possível. A “proposição” do elemento novo do God Pussy está também na óbvia saturação de barulhos que o trabalho apresenta, mas também como se dá a própria apresentação do disco no Bandcamp. As consequências de negar o mundo dado podem ser ruins (público de nicho, pouca divulgação em ditos sites especializados etc.) mas também é através desta abnegação sonorizada que a recusa também toma uma frente prática. Alguém pode (e normalmente repete isso, mesmo) afirmar que é “apenas” barulho, de maneira que alguém assim está fisicamente inapto pra, ao menos, dialogar com as mudanças propostas pelo artista. Não, não há nada de essencialmente “novo” neste disco. Mas ao invés de repetir simulações técnicas de rigorosamente todo tipo de música (seja a mainstream, seja a dita “alternativa”), a violação do God Pussy deixa uma marca evidente de sujeira na bandeira do status quo (pelo menos, e no mínimo, nos chamados artistas). O que ele apresenta é o contrário – quando as técnicas operam a realizar uma mudança radical e, portanto, essencial.

A partir destas diferença teóricas é possível nomear o estagnado momento musical como apenas multirrepresentativo (porque, realmente, a maioria das coisas não passa de representação). Eu mesmo caio neste erro muitas vezes (o da música multirrepresentativa) e é justamente em trabalhos tão extremos que é possível lembrar dos terrenos esquecidos. A música, é claro, não tem um destino e não tem apenas uma forma de ser apresentada ou interpretada. Se a música cede apenas pra estrutura hierárquica (e aí não importa muito se estamos falando de um pop doce ou algo considerado “vanguarda”), no entanto, todos os terrenos possíveis já teriam sido preenchidos há muito. É muito animador, então, encontrar neste corpo de trabalho alguma espécie de trem descarrilado que não apenas range ferozmente como aponta espaços largos onde ainda não existem trilhos.

God Pussy é tempo. Muito da crítica contemporânea está estagnada em maneirismos (um risco que esta resenha mesma corre de ter) e está procurando por alguma espécie de “novidade que una todas as tribos” enquanto este tipo de música já se insinua em antidelimitações.

Alguém pode surgir e lembrar que há mais formas ainda não delimitadas no mundo do que formas reacionárias. E não há dúvidas disso, só que é preciso quem catalogue ou crie as primeiras. O significante trabalho do God Pussy consegue desenvolver dualismos tanto teóricos quanto, especialmente, práticos e uma resistência empenhadíssima em dar não somente conta do presente mas em como mergulhar corajosamente no contemporâneo. Seu discurso é de um tipo de “poder” – em que o substantivo cede lugar ao verbo e explora os lugares que decide explorar. “Poder explorar”. Nós podemos entender suas dissonâncias, podemos nos perder em seus ruídos semicontínuos. E vamos tanto nesta intensidade que nos perguntamos em algum momento da audição, “o que é propriamente isso?”. O dito evento foi criado. O resultado: mais de cinquenta minutos indetermináveis em que você passou por “muita coisa”.

O que sobrevive entre todos estes diálogos são os barulhos. É o barulho que evidencia todos os tópicos mais ou menos abordados até este ponto. É o barulho que permite o God Pussy de ignorar panfletos políticos ou críticas infrutíferas. Barulhos inicialmente genéricos (afinal são manipulados) que desvendam a capa obtusa da disposição das coisas (e suas consequentes interpretações). Este princípio de desvendar que permite o dialogo final e mais importante do God Pussy.

O God Pussy remove todos elementos que o próprio Bandcamp fez questão de explicitar pra evocar, junto ao ouvinte, a satisfação de lugares desabitados. No entanto, a problemática do que é “lugar” e o que é “barulho” será efetivamente colocada na mesa por alguém. De fato: as coisas não são tão diferenciáveis assim no trabalho do God Possy. Elas “podem” acontecer. Elas “podem ser incidentais”. O músico reconhece a potencialidade do que se lança no mundo. Mas, perceba: elas nunca vem dadas, elas nunca vêm explícitas. Elas abrigam a “possibilidade originária” (claro que tudo dito aqui pode ser genérico, mas acredita-se que estas três últimas linhas – que explicitam a possibilidade dos acontecimentos – deixam as coisas menos especulativas). No entanto, não há certeza ou afirmação alguma do que pode ou não ser genérico. Consecutivamente e fatalmente isso vai caber na vivência do ouvinte em cada uma das três faixas. A distinção sempre cabe a quem assimila o trabalho final.

1. Abnegação Filantrópica – Parte1
2. Abnegação Filantrópica – Parte2
3. Abnegação Filantrópica – Parte3

NOTA: 9,5
Lançamento: 20 de janeiro de 2017
Duração: 56 minutos e 10 segundos
Selo: Human Cross Records
Produção: God Pussy

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