Quincy Jones tinha 30 anos quando conheceu pessoalmente Sidney Lumet. Ele já havia lançado uma série de álbuns de jazz (o primeiro é de 1955) e era bastante conhecido, mas não a ponto de ser chamado por Hollywood pra fazer a trilha de um filme. A bem da verdade, ele não conhecia nenhum homem preto que fora contratado pra essa posição. E Jones gostava de apreender os sons do filme que assistia, algo pra ser incorporado às suas criações.
Quando Lumet, um homem nascido da televisão, que havia conseguido um êxito em sua estreia na telona (um fracasso de bilheteria, mas que se tornou clássico com o passar dos anos), com “12 Homens E Uma Sentença” (12 Angry Men), em 1957, começou a trabalhar no projeto que viria a se tornar “O Homem Do Prego” (The Pawnbroker), ele não tinha Jones em mente. Mas Lena Horne, atriz e dançarina, também afrodescendente, como Jones, juntou os dois e Lumet aceitou o desafio de dar a Jones o espaço pra sua estreia no cinema.
Não foi uma escolha imediata. O diretor antes havia pensado em Gil Evans e até mesmo em John Cage.
Não era um projeto dentro dos padrões. Antes de largar a televisão de vez, Lumet fez pouca coisa, além da estreia, de relevância – vale citar, claro, “Vidas Em Fuga” (The Fugitive Kind, 1960, com Marlon Brando) e “Longa Jornada Noite Adentro” (Long Day’s Journey Into Night, 1962), mais um teatrão pesado. “The Pawnbroker” contava uma história não usual.
A Segunda Grande Guerra havia acabado há apenas dezenove anos (da data do lançamento, em 1964, mas o projeto começou a ser gestado em 1960, quinze anos depois do fim do conflito) e as feridas estava tão abertas que a Guerra Fria era o maior problema do mundo naquele momento. Tanto que o próprio Lumet filmou e lançou em 1964, junto com “O Home Do Prego”, o ótimo “Limite De Segurança” (Fail Safe).
Hollywood vinha bebendo nessa fonte já há um tempo, mostrando o sucesso dos Aliados. Filmes exultantes. Mas em nenhum momento havia mostrando as sequelas. “O Homem Do Prego” é justamente isso: o primeiro filme a mostrar os problemas cotidianos psicológicos enfrentados por um judeu “resgatado”, uma vítima direta da guerra.
Rod Steiger é Sol Nazerman, dono de uma loja de penhores em Nova Iorque e que leva a vida se arrastando, sem emoções, atormentado pelo passado. Enquanto estava no campo de concentração, ele testemunhou o estupro de sua esposa e a perdeu com seus dois filhos. Sem emoções, pra ele, a única coisa que importa é o dinheiro. O habitat o faz entrar em contato com vários personagens marginais da sociedade, um submundo sem glamour algum, distante daquela Nova Iorque cheia de vida vendida ao mundo. Nazerman sente repulsa pela raça humana e trata com desprezo a todos, desde seus clientes até seu ansioso assistente, um rapaz ambicioso de ascendência latina.
Lumet enfrentou o tema de forma ainda mais áspera, ao invés de amaciá-lo. Boris Kaufman, diretor de fotografia polonês (que trabalhou com o direto em “12 Homens E Uma Sentença”), utilizou o realismo nas cenas externas, com uso zero de luz artificial, especificamente nas cenas noturnas, se valendo do neon cafona e massacrante da cidade, e a maravilhosa cena da chuva, que deu um filtro cinza ao quadro e normalmente afugentava os cineastas da época. Nas cenas internas, a loja é cheia de grades, trancas e pequenos espaços escuros, sem entrada de sol, tal como o protagonista enfrentou nos campos de concentração.
Ralph Rosenblum foi o editor escolhido, que abusou dos cortes rápidos, com mínimos fotogramas, e mensagens subliminares, com o personagem lutando contra as memórias, numa estratégia utilizada desde o princípio do cinema, especialmente pra propaganda de produtos e ideias. Mais incomoda do que informa.
E, por fim, Quincy Jones. Nos créditos iniciais, depois de um começo idílico, quase uma propaganda de margarina, Nova Iorque aparece, com o clima imaginado por Jones explodindo na tela: não será uma jornada fácil. E não é. Quem vê o filme, mergulha nas dores de Nazerman, e as notas de Jones contribuem com a sensação.
Quincy Jones trabalhou nos arranjos e com as orquestrações de Richard Hazard e Billy Byers.
O peso do jazz funqueado marcante do compositor é a cara de Nova Iorque (e de Chicago), e por alguma razão que só a cabeça dele e de Lumet poderiam conceber, funciona perfeitamente como cama pra um tema tão pesado e uma atuação tão marcante, como a de Steiger. A peça-título conta com vocais de Marc Allen, sublinhando o peso dramático.
A trilha do resto do filme move-se sem esforço entre elementos de jazz, bossa nova e soul, conseguindo preencher a lacuna entre a vívida cidade que acolheu o personagem principal e a morte de seu coração.
O time de músicos tem Freddie Hubbard e Bill Berry nos trompetes; J. J. Johnson no trombone; Anthony Ortega no sax soprano; Oliver Nelson nos sax alto e tenor; Jerry Dodgion no sax alto; Toots Thielemans na harmônica; Don Elliott no vibrafone; Dave Grusin no piano; Dennis Budimir na guitarra; Carol Kaye no baixo; Tony Williams, Bob Cranshaw e Art Davis no baixo acústico; Elvin Jones na bateria; e Ed Shaughnessy na percussão.
“The Panwbroker” Foi a estreia de Jones no cinema, o que o fez mudar-se pra Los Angeles e abraçar a carreira de produtor de trilhas – até seu épico grande feito comercial, “Thriller”, de Michael Jackson (1982), que novamente o colocou em duas escalas de atuação. Quincy Jones fez mais de quarenta trilhas e tem sete indicações ao Oscar, incluindo como produtor de filmes (e o mais importante é “A Cor Púrpura”, de Steven Spielberg, de 1985).
O que faz da de “The Pawnbroker” algo tão especial é, pra além da sua estreia, o fato de Jones e Lumet terem colocado no mercado uma obra controversa (há os primeiros seios nus, numa briga com a censura), de tema pesado, sem se importar com o que a crítica e, muito menos, a audiência pensaria. E não é assim que nascem os clássicos?
01. Theme From The Pawnbroker
02. Main Title
03. Harlem Drive
04. The Naked Truth
05. Otez’ Night Off
06. Theme From The Pawnbroker (Instrumental Version)
07. How Come, You People!
08. Rack ‘Em Up
09. Death Scene
10. End Title