A tecnologia sempre moldou a música. Quando Steinway adicionou um pedal central ao seu piano de cauda em 1902, ele apresentou possibilidades de composição que antes eram imagináveis. No entanto, apesar dos avanços tecnológicos dos últimos cem anos, os instrumentos que tocamos praticamente não mudaram, e os novos se parecem muito com os antigos. Então, onde estão todos os novos instrumentos musicais?
O destino de novos instrumentos é volúvel e, pra seus inventores, o sucesso parece precário. O saxofone – o último recém-chegado a ser um sucesso – foi patenteado por Adolphe Sax, flautista e clarinetista belga, em 1846. Enquanto seu inventor ainda estava vivo, o instrumento teve peça escrita pra ele por Bizet; mas somente depois que Sax morreu, na penúria, em 1894, ele foi deificado entre os novos sons que o jazz trouxe.
Os primeiros instrumentos eletrônicos, enquanto isso, estão chegando a um século de idade. O teremim (criado por Lev Sergeyevich Termen em 1920 e patenteado em 1928) e seu primo-órgão, o Ondas Martenot (criado em 1928 por Maurice Martenot), datam da mesma época. Embora ambos ainda sejam tocados, nenhum deles decolou em popularidade como o sax. A eletrificação criou as maiores ondas mainstream, produzindo novas versões viscerais do piano em teclados elétricos, como o Fender Rhodes, o Wurlitzer e o Clavinet. A guitarra elétrica, que aturdiu os pais nos anos 1950, foi canonizada desde então.
Os sintetizadores, a mais nova família de instrumentos, também são os mais onipresentes, tendo evoluído com novas tecnologias e interfaces a partir dos anos 1960. Em sua forma mais básica, eles compartilham o traço comum de converter sinais elétricos em som; mas sua extensa genealogia inclui linhas modulares e integradas, monofônicas, polifônicas, analógicas e digitais. Os modelos caíram de moda tão rapidamente quanto os gêneros que eles definiram se cristalizaram na consciência popular; enquanto os inventores competiam pra produzir iterações aprimoradas e descobrir novos sons. Mas, apesar de toda a sua engenhosidade e expansão da possibilidade musical, quase todos os sintetizadores comerciais estão presos no molde do teclado. Outras interfaces mais novas, como o sintetizador de guitarra e o Stylophone, tiveram seus momentos e ficaram pra trás.
Isso não quer dizer que milhares de formas de instrumentos inventivos não sejam criadas a cada ano. No anual Guthman Musical Instrument Competition no Instituto De Tecnologia Da Georgia, em Atlanta, Esteites – “um evento anual que visa identificar a próxima geração de instrumentos musicais do mundo e desvendar as melhores novas ideias em musicalidade, design, engenharia e impacto”, como o próprio evento se descreve, anunciado-se como uma espécie de Conferência TED pra novos designers de instrumentos musicais – um painel de juízes decide qual apresentação melhor redefine o que constitui um instrumento musical e como a música é feita e experimentada. Os vencedores recentes incluem o acústico yaybahar de cordas turco (veja vídeo abaixo) e o sintetizador portátil da empresa sueca Teenage Engineering, o OP-1 (veja vídeo abaixo). No entanto, apesar da atenção que a competição recebe, a maioria dos vencedores se restringe àquela apresentação. Poucos chegam ao mercado, poucos vêem os limites do seu potencial explorado e menos ainda têm novas músicas compostas a partir deles.
Um problema, de acordo com Adam Harper, autor de “Infinite Music” e musicologista na Universidade De Oxford, é que os músicos ficam presos pela profissionalização depois de dedicar anos pra dominar um instrumento. “O instrumento que você toca define você. Você é saxofonista ou pianista, toca um ou talvez um instrumento e meio e você se alterna entre os dois”.
Pros fabricantes de instrumentos, isso apresenta dois problemas: como fazer com que músicos usem seu novo instrumento; e como induzir os compositores a escreverem uma nova música com ele, especialmente se a sobrevivência de suas partituras estiver ligada à longevidade do instrumento. E tem toda a parafernália – microfones, multitracking e delays. Somente percussionistas na orquestra devem tocar vários instrumentos; e é a adaptabilidade inerente desta seção que a fez crescer e mudar, adicionando elementos de tradições não-ocidentais, como tambores de aço e ganzá brasileiro, e um novo kit como o vibrafone.
O advento da gravação e do estúdio também deteve o desenvolvimento. A capacidade de gravar e reouvir performances dramaticamente acelerou a obsessão profissional com o perfeccionismo, elevando os padrões de jogo. E desde o início a distinção entre equipamento de gravação, tecnologia e instrumentos reconhecidos não era clara – mesmo pra seus inventores.
Os primeiros sintetizadores Moog, no início dos anos 1970, foram comercializados como “equipamento de áudio profissional”. Os gravadores foram utilizados no início da década de 1940 pelo compositor francês Pierre Schaeffer, co-fundador do movimento musique concrète, que lançou as bases pros samplers. Mais tarde, em 1979, Brian Eno falou sobre o potencial do estúdio de gravação como ferramenta de composição. A compreensão atual dos instrumentos torna-se muito mais diversificada. Quase tudo, desde um software até uma placa Arduino, pode ser classificado como um instrumento.
Muitas vezes, as intenções dos inventores eram imprecisas. A lendária drum machine programável TR-808, fabricada pela empresa japonesa Roland em 1981 e descontinuada em 1984, foi feita pra demos de banda. Seu preço era alto e esperava-se que parecesse realista, mas o barulho que fez foi muito pouco semelhante ao de qualquer kit de bateria conhecido.
“Eles fizeram o melhor que puderam com a tecnologia analógica e isso soou uma merda”, diria mais tarde Sean Montgomery, gerente de produtos da Roland. Em vez disso, seus estranhos sons de computador foram abraçados por músicos como Ryuichi Sakamoto, da Yellow Magic Orchestra. E, como muitos outros sintetizadores, o fracasso comercial foi a causa de seu sucesso posterior, pois saiu da produção e pôde ser adquirido a preço de banana no mercado de revenda por músicos mais jovens.
Nos Esteites, nas mãos do Afrika Bambaataa e do Egyptian Lover, as batidas do TR-808 lançaram as bases do hip-hop. Ao mesmo tempo, Juan Atkins, influenciado pelo Kraftwerk, fundou o techno de Detroit. Tão influente é o 808 que um documentário narrando sua história estreou no festival de cinema SxSW 2016 (veja trailer abaixo).
“As pessoas vão usar os instrumentos como sempre”, diz Roger Linn, o homem por trás do LM-1 Drum Computer, um modelo mais realista que surgiu logo após o 808, acelerando a sua morte. “E eu estou surpreso, às vezes agradavelmente e às vezes desagradavelmente”. Linn deveria saber, porque em 1988 ele ajudou a Akai a produzir o MPC60 (MIDI Production Center 60), uma pequena bateria eletrônica com dezesseis botões que podia samplear vinte e seis segundos de áudio. Isso acidentalmente introduziu o sampler na música moderna. “Os músicos me perguntavam: ‘posso ter mais duzentos a trezentos segundos de memória?’ E quando eu perguntei: ‘Por que vocês precisariam disso?’. Eles disseram: ‘gostaríamos de usar isso como base pra nossa música’. E eu pensei, é uma ideia maluca, mas é claro que a criação de loops preexistentes se tornou uma base pra composição contemporânea”.
Usado pelos pioneiros A Tribe Called Quest, De La Soul e The Pharcyde, o MPC60 deu ao produtor os meios pra criar beats, sequências de instrumentos e samples de sons em uma única máquina, mesclando composição em tempo real com gravação. No final da década de 1990, MPCs e samplers foram substituídos por estações de trabalho de áudio digital (DAWs) – softwares como Ableton Live, Cubase e Logic – pra organizar faixas. Enquanto sintetizadores caros e baterias eletrônicas que foram criados originalmente pra substituir instrumentos acústicos e artistas ao vivo foram substituídos por versões de software usando controladores MIDI pra manusear sons produzidos digitalmente. Os computadores haviam vencido e o virtuosismo musical começou a assumir formas mais cerebrais.
“O grande benefício dos sequenciadores de computador”, segundo Brian Eno, “é que eles removem a questão da habilidade e a substituem pela questão do julgamento”.
MIDI é o primeiro contato da maioria dos jovens ao fazer música hoje. Criado em meados dos anos 1980 pelo designer de sintetizadores Dave Smith e Ikutaro Kakehashi (da Sequential Circuits e Roland), o MIDI (Musical Instrument Digital Interface) é um protocolo pra sincronizar sintetizadores, baterias eletrônicas digitais e sequenciadores e que mudou os parâmetros da música.
Como acontece com a maioria da tecnologia hoje em dia, seus controladores estão confinados a botões, dials e faders, que perdem aquela sensação de interação física em tempo real que os instrumentos acústicos ou analógicos ofereciam. No passado, você poderia usar a sua respiração ou a batida dos dedos pra variar uma nota e seu volume, timbre ou tom, mas na maioria das músicas geradas eletronicamente não há mudança no som entre quando uma nota começa e termina. Limitado pela sua interface, sons sintetizados ou gerados eletronicamente perderam alguns aspectos da expressão. Os teclados de piano MIDI são “essencialmente um conjunto de botões on-off e pouco mais que isso”, diz Linn.
Mas Linn acredita que estamos à beira de uma revolução. “Você pode olhar pro período entre 1970 e 2020 como um período de transição pra instrumentos musicais, quando as pessoas tocam música com botões criados pra gerar dados, não pra criar música”. Linn espera o retorno de uma qualidade visceral da produção musical e da expressão física. Como se invertesse o caminho traçado pelos samplers, ele é um dos cinco inventores de instrumentos atualmente redesenhando a tecnologia musical em torno dos sentidos humanos; e fazer instrumentos que respondam a gestos e movimentos sutis pra formar um som palpável. Novos aparelhos como o LinnStrument e o Seaboard são controladores MIDI que se concentram na expressão física; e, como tal, podem forçar um novo paradigma de criação de instrumentos.
“Depois de 2020, vamos começar a ver o retorno do virtuosismo e da habilidade de performance”, diz Linn, com confiança. Tendo estado no ramo por tanto tempo, ele tem uma credibilidade alta; e sua formação musical pode diferir do seu conhecimento técnico médio em tecnologia musical: seu pai era professor de música e sua mãe cantava ópera.
O LinnStrument possui três antecessores: o Eigenharp, Continuum e Soundplane, que permitem a modulação física do pitch, volume e timbre. A criação de Linn é uma placa plana sensível à pressão com oito linhas translúcidas que combinam os esquemas de notas de um violino e violão. Cada linha tem semitons consecutivos, como os encontrados em instrumentos de cordas, que você pode deslizar entre os dois e que soam como no baixo. A facilidade de tocar é essencial. Segundo Linn, a facilidade de tocar e produzir o tom certo é o que tem dificultado instrumentos acústicos mais arcaicos.
A Seaboard Rise, lançada no final do ano passado, combina design de produto com inovação musical. A Seaboard foi inventada por Roland Lamb, cuja startup Roli não se sentiria deslocada ao lado de companhias de música como Sonos e Ableton. É usada por artistas como o compositor Hans Zimmer, o organista Cory Henry e os músicos Dam Funk e London O’Connor. Mas Lamb pretende incorporar o instrumento em escolas de música e consolidar o apelo com músicos em gêneros tão amplos quanto hip-hop, eletrônica, jazz e música clássica.
A Seaboard evoluiu a partir do teclado de piano, mas não possui teclas clássicas, sua placa sensível à pressão permite que os músicos produzam tons entre os doze padrões; e variar o volume e o timbre através do toque. As teclas suaves do instrumento fazem com que a experiência de tocar seja mais sensorial, intuitiva e orgânica. Através do toque, os músicos podem tentar reproduzir a sensação de tocar um instrumento acústico.
Eis a Rise:
E aqui a Grand:
Lamb expressa a mesma crença de Linn: que a música digital está mudando. “Acho que agora estamos diante de um novo começo na música. Os mundos da música digital e acústica estão começando a se unir”, disse ele à revista Dezeen.
Lamb praticava o zen budismo no Japão e estudou filosofia clássica chinesa e sânscrita em Harvard antes de fazer mestrado em design no Royal College Of Art, com o israelense Ron Arad, onde desenvolveu seu conceito pra Seaboard. Lá, seu examinador externo escolhido foi Roger Linn. A determinação de Lamb pra incorporar sua invenção nas escolas já valeu: tocar o instrumento agora é obrigatório pra estudantes de música eletrônica no Guildhall de Londres. Ele também está começando a ser tocado por estudantes no primeiro conservatório de música da Índia, o KM Institute em Bangalore, o que poderia abrir possibilidades interessantes pra música indiana shruti, em que os tons não correspondem ao sistema ocidental de doze notas.
“A instituição da composição clássica está num turbilhão realmente interessante”, diz Adam Harper. “Os jovens que chegam estão se inspirando na música subterrânea, eletrônica e popular, e estão tendo que encontrar uma maneira de combinar essas tradições”.
Talvez estejamos vendo um retorno aos primórdios da música eletrônica quando, no espírito do experimento, compositores como Karlheinz Stockhausen e Harrison Birtwistle visitaram o estúdio EMS de Peter Zinovieff, em seu galpão em Putney. Hoje, grupos de jovens músicos como a London Contemporary Orchestra estão colaborando com músicos eletrônicos como Actress, que não são treinados musicalmente.
Essa convergência não para na música clássica e eletrônica. Desde que o software DAW gratuito e pirateado se tornou disponível, quase qualquer um com um laptop e acesso à Internet pode compor e fazer música baixando amostras e sons que podem replicar qualquer instrumento, desde um gamelão balinês à batida da 808. Desde que as plataformas de streaming e compartilhamento se tornaram difundidas, a amplitude da música disponível e o apetite das pessoas se expandiram maciçamente. “Nenhum gênero é particularmente tabu”, diz Dick Rijkin, diretor do STEIM (Studio for Electro-Instrumental Music). “Dentro do mainstream, um interessante processo reflexivo está em andamento, onde quase não há mais sentido de desenvolvimento linear no tempo. As pessoas estão combinando as coisas mais loucas”.
Através do Bandcamp e do Soundcloud, Kanye West tem atraído e tirando produtores como Arca – que agora trabalha com Björk – e Evian Christ da relativa obscuridade. Juntamente com isso, um artista de hip-hop como Kanye também está explorando os tesouros de soul e disco, e experimentando músicos de nicho, como o falecido violoncelista, compositor e pioneiro do disco Arthur Russell.
Paixão por sons antigos e obsolescência tecnológica têm impulsionado a demanda por sintetizadores Eurorack de segunda mão que estão agora fora de produção, massivamente inflando seus preços e encorajando as empresas originais como Yamaha, Korg e Roland a reviver seus melhores modelos. Em 2015, a Roland começou a vender seu primeiro sintetizador modular em vinte e cinco anos, o System-500. A Korg lançou um remake do ARP Odyssey, que já tem quarenta anos. E depois do seu quinquagésimo aniversário, a Moog está refazendo números limitados de seus primeiros sintetizadores modulares. Revistas de música como FACT e Resident Advisor dedicam seções inteiras pra acompanhar essa história.
Então, por que as grandes empresas estão engajadas nesse tipo de produção regressiva, em vez de explorar novas formas de expressão? Roger Linn acha que eles deixarão os pioneiros testarem o mercado primeiro, embora possamos ver as grandes empresas lançando novos controladores.
Mesmo que instrumentos como a Rise ou a LinnStrument permitam mais expressões físicas, eles ainda são limitados pelo formato em que são expressos: MIDI. Antes do advento do MIDI, argumenta o filósofo e compositor Jaron Lanier, em sua polêmica “You Are Not A Gadget
– A Manifesto”, “uma nota musical era um campo ilimitado de possibilidades: quando um músico canta ou toca um instrumento, não há duas notas iguais”. Mas música não é dado e MIDI lava a música e nós aceitamos sua versão diluída do som. O produtor e músico Aaron David Ross, que tem formação clássica e estudou codificação, concorda. “Há cerca de mil diferentes articulações disponíveis pra um pianista por nota. O padrão MIDI reduz para cento e vinte e sete. Isso não é um problema em muitos estilos musicais, particularmente na dance music, onde as dinâmicas são frequentemente planas e altas, mas pras mais expressivas formas compostas, como música experimental ou trilha sonora de filmes, essa resolução emocional extra poderia ser crucial”.
Ross também toca em outro problema: o MIDI está tão padronizado no sistema que será difícil desfazer seu bloqueio tecnológico. “Tantas empresas independentes estão criando softwares dentro das mesmas especificações estabelecidas que novos controladores de hardware altamente expressivos dificilmente seriam incompatíveis de maneira direta”.
Assim, a tensão entre o artificial e o autêntico que prevaleceu nos debates sobre o acústico versus elétrico e o analógico versus o digital continua. Argumentos sobre ferramentas e tecnologias, o estranho e o familiar, seguem à medida que a obsolescência tecnológica ganha paixão e os sons crus se enchem de alma com o tempo.
“As pessoas estão nostálgicas das baixas taxas de bits da sujeira inicial”, diz Adam Harper, “como conseguiram através de obsoletas plataformas de compartilhamento de arquivos Limewire e Fileshare nos primeiros anos. Hoje em dia, as pessoas dizem que as baterias eletrônicas têm alma. Quem sabe, talvez daqui a cinquenta anos as pessoas estarão ouvindo MP3s e dizendo que esses foram os bons e velhos tempos da música real”.
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Artigo publicado originalmente em 2 de setembro de 2016 por Sharon Thiruchelvam, na The Lond And Short. A tradução não foi diretamente autorizada e é totalmente livre.