“THE PERFECT KISS”: O VÍDEO QUE DEFINIU A IMAGEM DE UMA BANDA

Michael H. Shamberg é um produtor de vídeo e cinema estadunidense. Seu nome voltou a ganhar as manchetes em 1º de novembro de 2014, quando os membros do New Order divulgaram uma nota de pesar pela sua morte (aos 62 anos): “estamos profundamente tristes por saber que nosso amigo e colega Michael H. Shamberg faleceu, após uma longa luta contra uma doença neurológica”.

Peter Hook, já não mais na banda, também soltou uma nota: “Michael foi um cara amável, seu trabalho em nossos vídeos, tão importantes naquela época, definiram nossa imagem e uma era. Ele era um verdadeiro revolucionário”.

Ele dirigiu apenas um longa-metragem, chamado “Souvenir”, em 1996, que quase ninguém viu ou se importou. Porque sua marca estava em outra área, a de vídeos promocionais de música, e como fundador da Factory Records nos Esteites (a Factory US) – além de grande amigo dos quatro integrantes do New Order.

O Baltimore Sun, jornal da cidade que ele escolheu morar na sua última década de vida (ele nasceu em Nova Iorque), destacou sua importância como uma “força artística da natureza, produzindo videoclipes antes de qualquer um sequer ter ouvido falar de MTV”.

A MTV é de 1981 e o primeiro passo de Shamberg foi produzindo nesse mesmo ano o vídeo de um concerto do New Order em Nova Iorque.

Nessa época, nascido dos escombros do suicídio de Ian Curtis, o New Order pouco mostrava o rosto em materiais oficiais. O primeiro disco, “Movement”, de 1981, e o segundo, “Power Corruption & Lies”, de 1983, não tinham uma só imagem de qualquer integrante. Os singles, igualmente. Nos cartazes dos shows, idem. Numa época sem Internet e sem celulares pra tirar fotos a todo e qualquer momento, era bem difícil manter esse distanciamento estético (aqui, no caso, a ideia era basicamente não parecer que a banda estivesse querendo aproveitar o suicídio do ex-companheiro pra se promover). O New Order tentou até onde foi possível ser a “banda sem rosto”.

Ou até Shamberg. Suas criações pra peças visuais como “True Faith”, “Blue Monday” (a versão 1988), “Touched By The Hand Of God” e “Round & Round” se tornaram icônicas pra banda. Além do New Order, ele desenvolveu uma visão particular pra vídeos pro R.E.M., pro The B-52’s, pro Talking Heads e pra Patti Smith. Mas foi com um vídeo em particular que ele mudou a história da banda: “The Perfect Kiss”.

O ano era 1985. O New Order precisava mudar sua abordagem com o público, depois do sucesso arrebatador de “Blue Monday”, dois anos antes. A banda precisava literalmente “mostrar a cara”. Shamberg foi então escalado pra produzir uma peça visual que fosse a identidade da banda.

Pouco antes, ele havia sido apresentado a Jonathan Demme, diretor que tinha alguns filmes no currículo (nada muito relevante, a não ser a trama pseudo-hitchcockiana “O Abraço Da Morte”, de 1979) e que havia ganho fama pela vibrante visão criada pro Talking Heads no documentário “Stop Making Sense”, com David Byrne exibindo um terno enorme e, por conta disso, uma dança assombrosamente plástica.

Shamberg resolveu convidá-lo pro trabalho. Os dois se encontraram no finado Cafés Des Artistes (hoje funciona lá o The Leopard At Des Artistes), do crítico e chef húngaro George Lang, no número um da West 67th Street, coladinho ao Central Park de Nova Iorque.

Segundo Shamberg, comeram ovos de codorna e falaram sobre música: “por acaso, ele citou ‘Subway/Sudan’, do Thick Pigeon, sem saber que a garota por trás daquela obra, Stanton Miranda, era minha namorada”, disse Shamberg.


Apesar de se entenderem sobre gostos musicais, Demme pediu vinte mil dólares pra fazer o trabalho. Era um bocado de dinheiro, mas Shamberg acabou concordando. A ideia era fazer um curta-metragem. “A música tinha nove minutos e o New Order não faria uma versão editada”, escreveu certa vez Shamberg, “a mesma coisa tinha rolado com ‘Blue Monday’: as rádios imploraram por uma ‘Blue Monday’ editada quando ela virou sucesso; mas esse era uma grande qualidade da banda: não só ela fazia música boa, como fazia questão de manter certos valores e não se curvava à indústria”.

A aposta alta de Shamberg em Demme se revelou um caso “quebrar a banca”. Não dava pra saber ainda em 1985, mas aquele diretor se tornaria um dos maiores da história do cinema e isso aconteceria muito em breve.

No ano seguinte, Demme lançou seu primeiro sucesso juvenil, “Totalmente Selvagem” com uma exuberante Melanie Griffith nos seus impactantes 29 anos. Depois, veio outra comédia tipicamente novaiorquina, “De Caso Com A Máfia”, de 1988, sobre um agente do FBI que se apaixona pela viúva de um mafioso – a viúva é ninguém menos que Michelle Pfeiffer, então com não menos exuberantes 30 anos.

Daí, corte de três anos e… a glória. Demme lançou em 1991 “Silêncio Dos Inocentes”, um filme que já nasceu clássico, mostrando a união de uma agente do FBI (Jodie Foster) com um perigoso psicopata, Hannibal Lecter (Anthony Hopkins), pra tentar capturar um serial killer. A obra foi o grande sucesso de crítica do ano e entrou pra história também pelos prêmios que conquistou. “O Silêncio Dos Inocentes” se igualou a “Aconteceu Aquela Noite” (Frank Capra, 1934) e a “Um Estranho No Ninho” (Milos Forman, 1975), como os únicos ganhadores dos cinco Oscar principais: filme, diretor, atriz, ator e roteiro.

Sete anos depois de receber vinte mil dólares pra filmar “The Perfect Kiss”, um videoclipe, Demme colocaria sua foto três por quatro na galeria dos maiores do cinema. E faria mais pela sétima arte: embora tarde demais, “Filadélfia” levou a questão da AIDS ao cinemão; “O Casamento De Rachel” (2008) entregou uma obra transbordando sensibilidade; e ainda fez uma nova versão pra “The Manchurian Candidate” (2004), história quem em 1962 John Frankenheimer já havia levado ao cinema, com Frank Sinatra.

Shamberg parece ter tido sorte, mas está mais pra um caso de alguém que tem percepção apurada pro talento. Além de Demme, ele também contratou uma diretora em começo de carreira, com apenas 37 anos, Kathryn Bigelow. A proposta de Shamberg pra Bigelow era bem mais ousada que a feita a Demme em “The Perfect Kiss”. Em 1989, a diretora que viria a ser a primeira mulher a ganhar um Oscar de direção, por “Guerra Ao Terror” (2008), assumiu as lentes de “Touched By The Hand Of God”, música que nem em disco apareceu, pra mostrar que o New Order não era uma banda carrancuda, que era um quarteto que podia brincar e tirar sarro de si mesmo.

O vídeo caracteriza o New Order como uma banda de metal farofa, num palco farofa, com luzes-farofa, gelo seco e muita pose.

Mas isso só seria possível porque a dupla Shamberg e Jonathan Demme moldaram a imagem do New Order como ela passaria a ser a partir dali. Pela primeira vez, em material promocional, os fãs veriam os rostos dos integrantes da banda que estourara com “Blue Monday”. Mesmo aqueles que conheciam os integrantes pelo Joy Division tinham um distanciamento visual e precisavam ser “apresentados” ao grupo.

Nesse intuito, no acerto feito no Café Des Artistes, Demme ficou sabendo que a banda não usaria playback: a performance teria que ser ao vivo e aconteceria no local de ensaios do grupo, na Inglaterra.

Shamberg não pensava pequeno. Pra direção de fotografia, pensou em ninguém menos que Jack Cardiff, o “mestre das luzes e cores”, indicado quatro vezes ao Oscar e que já havia trabalhado em clássicos de Alfred Hitchcock, John Huston, Joseph L. Mankiewicz e no “Guerra E Paz” filmado por King Vidor em 1956. Só que Cardiff declinou, porque estava escrevendo sua autobiografia (“Magic Hour: A Life In Movies”, que saiu em 1997).

Com a recusa, o produtor partiu pra outro grande nome, Henri Alekan, autor da fotografia do delicioso “A Princesa E O Plebeu”, de 1953, dirigido por William Wyler. Alekan foi indicado ao Oscar por esse filme, mas é conhecido especialmente pela sua parceria com Joseph Losey, por “O Estado Das Coisas”, filme de 1982 de Win Wenders, e pelo clássico absoluto de “A Bela E A Fera”, de Jean Cocteau, de 1946.

“As pessoas disseram que ele não estaria interessado em fazer um vídeo de música pop, que não viajaria pra Manchester, e que de qualquer forma ia ser muito caro. Elas estavam erradas em todas essas sentenças. Como produtor, eu sempre ia até o fim no que eu queria. Se era o certo, acabava acontecendo”, escreveu Shamberg.

Alekan tinha 76 anos em 1985. Não era um moço como Demme (então com 41), de modo que ele trouxe seu técnico Louyis Cochet junto. O diacho é que Cochet também estava na casa dos setenta, com 71 anos. O primeiro grande vídeo do New Order estava na mãos e nos olhos de uma turma que podia ser de pai a avô dos quatro integrantes.

“Quando Alekan e Cochet chegaram ao aeroporto de Manchester, eu peguei a bagagem de Cochet pra ajudar, e ele bateu na minha mão: queria ele mesmo carregar sua bagagem. E ao longo das filmagens ele se mostrava tão ágil quanto um macaco, pra cima e pra baixo nas escadas, montando as luzes, sob a direção de Alkean”, lembra Shamberg.

Outro grande nome envolvido na produção era Agnès Godard, francesa que viria a ser uma das melhores diretores de fotografia do mundo, trabalhando nos filmes de Claire Denis.

A primeira coisa que Alekan fez foi colocar grandes luzes pra iluminar o estúdio, no lugar das entradas de luz natural. O que se vê no vídeo não é o sol. Pros closes dos integrantes, Cochet teve que suavizar o fundo com um material tipo gaze. Como a banda estava tocando ao vivo, havia uma estrutura multicanal gravando cada tomada.

“Uma vez que tínhamos um mestre em fotografia nos guiando, tive que filmar em película de 35mm”, conta. “Imaginei que isso poderia ser um curta-metragem. Gravei as filmagens em Super-8 e tal filmagem pode ser vista no vídeo de ‘Shellshock’. Acho que Tony Wilson tinha esse material e o editor quis colocar os vídeos juntos. Eu gosto dele, mas toda vez que eu vejo o vídeo fico triste porque todo o material original foi perdido”, revela.

“Depois da filmagem, fomos ao Hacienda. Não só Alekan e Couchet foram com a gente, como eles ainda partiram pra paquera!”, se diverte Shamberg.

A edição do vídeo foi feita em Londres. Quem assina a edição é outro grande nome: Tony Lawson, responsável por “Sob O Domínio Do Medo” (1971) e “A Cruz De Ferro” (1977), ambos de Sam Peckimpah, que inovou nas montagens de seus filmes nos anos 1960 e 1970, e por “Barry Lyndon” (1975), de Stanley Kubrick. Foi Demme quem colocou Lawson na jogada. O filme foi editado na moviola e só com o material final alcançado é que tudo foi transposto pra vídeo.

Houve depois um problema básico: quando a edição foi encerrada, era preciso mixar a música tocada ao vivo em várias tomadas. Depois da mixagem, foi preciso bater cada corte pra ver se havia sincronia. Isso demandou certo tempo – e dinheiro além do previsto.

Com tudo encerrado, “The Perfect Kiss” acabou sendo exibido nos cinemas. Primeiro, por ajuda de Alekan, num cinema na Champs Elysée, em Paris. Em Nova Iorque, o clipe passou como um curta antes da exibição de “Stop Making Sense”. Em Londres, foi exibido antes da comédia “Malícia Atômica” (1985), de Nicolas Roeg. Também foi exibido em alguns festivais de cinema.

“O filme foi bem caro. Se você considerar todos os elementos, deve ter custado mais de duzentas mil libras. Alguns anos depois, essa cifra se tornaria normal, mas pra Factory Records, era uma extravagância”, disse.

Shamberg admite que apesar do alto custo, há erros crassos na obra. O principal motivo é que a falta de planejamento não previu uma condição técnica elementar: um filme em 35 milímetros roda a vinte e quatro quadros por segundo. Quando se passa pro vídeo no formato europeu (PAL), ele roda a vinte e cinco quadros por segundo e nos Esteites (NTSC), a trinta quadros por segundo. Por isso, quando foi feita a captação, Demme teve a preocupação de já rodar a vinte e cinco quadros por segundo. Acontece que na exibição nos cinemas, os projetores (analógicos) rodam a vinte e quatro quadros. “Quando o filme foi projetado, percebi que o som estava devagar”, lamenta.

Mas esse é um problema pra quem vir a peça num cinema, algo que hoje em dia não acontece mais. Só que há outros equívocos. Se você olhar com atenção, verá, por exemplo, que na cena final, Peter Hook toca um baixo que não coincide com a música. Ele termina de tocar antes do som do baixo acabar.

Shamber escreveu que esse foi “um erro, sim, mas conhecido e proposital. Não me lembro a razão exata pra isso, mas uma coisa que eu aprendi ao longo dos anos é que é necessário deixar um problema no produto acabado. Isso lhe dá vida. Isso o torna mais arte e menos um produto comercial”.

No final das contas, o resultado é arrebatador. Não há câmeras aceleradas. Não há cortes excessivos. Os planos são longos. Os closes são amplos. Não há efeitos de imagem. Não há trucagem. Não há movimentos de câmera. É o espectador e a banda. E a música.

Andrew Unterberger escreveu pra Billboard: “vídeos ao vivo são tradicionalmente orientados pra exaltar o artista, pra capturá-los no auge da sua força ao vivo e geralmente os fazem parecer como superstars. ‘The Perfect Kiss’ não tem tais ilusões ou ambições. Ele captura o New Order num momento extremamente apreensivo, sem uma plateia ou hype ou nada disso, além da câmera de frente pra eles (e de um par figuras desfocadas em silêncio observando a banda). É de certa forma irônico, mas mostra uma versão bastante imperfeita desse synth-pop épico. Em todo o vídeo, o New Order parece bem estressado. O vídeo capta precisamente o quão difícil e estressante é essa experiência de tocar ao vivo – especialmente pra uma banda como o New Order, tocando composições que são metade programadas e metade orgânicas, onde há tantos ganchos diferentes e elementos rítmicos que Peter Hook tem que fazer malabarismo pra mudar do baixo pra bateria eletrônica. Durante todo o vídeo, Demme capta os artistas em close-up – as suas expressões de concentração sobre o que estão tocando (ou se preparando pra tocar), e os dedos fazendo o trabalho real de tocar aquilo que se ouve – criando uma intimidade desconfortável”.

A intenção de Demme e Shamberg era mostrar e despir a banda de toda e qualquer mecanicidade. Era mostrar que aqueles quatro indivíduos, a despeito de toda tecnologia e som eletrônico que tirassem de seus instrumentos nada orgânicos, eram humanos, pessoas e não robôs. “Blue Monday” não foi criada por máquinas. O “som de sapo” de “The Perfect Kiss” tem o dedo humano pra extraí-lo.

Nesse sentido, Demme fez um excelente trabalho. Todo o nervosismo está ali. O New Order está jogando em casa, sem plateia, sem a pressão de ter que acertar (afinal, errando, era só começar a filmar de novo) e mesmo assim está incomodado com alguma coisa, em provavelmente parecer uma banda bem ensaiada e que sabia o que estava fazendo.

Curiosamente, se a ideia era transformar os integrantes em “humanos”, o vídeo acabou fazendo deles uma banda carrancuda, reforçado, claro, pelo fato dos shows do New Order daquela época serem extremamente frios na comunicação com a plateia: nenhum “boa noite”, nenhum “até logo”, sem sorrisos, sem interações, nada. “The Perfect Kiss” foi o retrato perfeito do que era aquela banda – mesmo que pareça em alguns momentos que Gilliam Gilbert esteja sorrindo. Talvez por isso o trabalho de Kathryn Bigelow, com “Touched By The Hand Of God”, seja tão importante, desconstruindo essa imagem carrancuda.

Quando “Low Life”, o terceiro disco do grupo, foi lançado, no mesmo ano de 1985, ali estava uma versão – ora veja só! – editada de “The Perfect Kiss”, com quatro minutos a menos e fotos de todos os integrantes (Stephen Morris na capa). O New Order estava fazendo o jogo da indústria ou só entregando um novo produto, duas “The Perfect Kiss” diferentes?

Na Factory, o trabalho, apesar de caro, foi considerado uma obra de arte, nesses termos. O selo, que como qualquer outro enumera suas obras e lançamentos conforme eles vão saindo, deu ao single “The Perfect Kiss” a etiqueta “FAC 123”, quando foi ao mercado em 13 de maio de 1985. O vídeo dirigido por Jonathan Demme acabou, por obra do destino (ou por obra da mente amalucada de Tony Wilson, o capo do selo), recebendo a ordem “FAC 321”, o inverso da etiqueta do single.

Nada parece acontecer ao acaso com o New Order.

Jonathan Demme morreu em 27 de abril de 2017 como um dos grandes do cinema, mas também como o sujeito que pra muita gente criou o melhor e mais impressionante videoclipe da história da música.

Veja o vídeo:

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