No final do meu último texto sobre vaporwave, eu disse que estamos ligados a um passado fabricado, condicionado pela nostalgia através das mercadorias. Aqui estamos, cercados pelos muros consumistas que se escondem por entretenimento e impossibilita-nos de uma conexão menos simulada com a realidade a qual atravessamos. A ideia antiga de filme de horror não nos perturba mais, a infiltração nos subúrbios norte-americanos pelos aparelhos de televisão, pelo closet ou monstros que se escondiam embaixo da cama não amedrontam crianças e adolescentes. Isso soa bobo e infantil pois todo o espaço doméstico já foi invadido pela alegoria virtual, pela vida online. A invasão não soa mais como ameaça. Pelo contrário, nós nos expomos à sua ação – fotos compartilhadas, momentos felizes e lutos divididos, um emprego novo etc. O que os filmes antigos de horror representavam eram uma ameaça ao alicerce familiar e da classe média, os valores corroídos por monstros (ou alienígenas) cujo motivo de maldade era desconhecido por nós. Pra fazer algum filme de horror que atinja esse mesmo alicerce, algum cineasta teria de penar muito e nadar no oceano dos produtos pra ver o que ainda pode invadir a cultura familiar, pois o processo de invasão foi completado desde o bebê que nasce com a chupeta eletrônica detectando seu ritmo cardíaco ao pai de família que assiste a um jogo de futebol enquanto compartilha memes no grupo do zap.
Diante da destruição do espaço privado, os chamados “longos momentos de reflexão” cederam aos compartilhamentos instantâneos. Momentos em que é possível encontrar uma fenda na existência, agora, são reservados às fatalidades-terminais; mortes, tragédias, guerras etc.
Se antes a mídia eletrônica garantia um acesso a um outro mundo (e a partir desse acesso desconhecido que os filmes de horror exploravam seu conteúdo), o que hoje ela garante é um acesso fragmentado a uma aparência de mundo, seja ele real ou não. São as chamadas interações. A questão que se coloca não é sobre uma suposta necessidade de regressão, mas a urgência de uma tomada de consciência dos processos que condicionam a onipresença de uma simulação. É uma questão que foi acelerada a partir da pluralização dos elementos que possibilitam a invasão doméstica e que, apesar do número maior de portais de acesso, tornou a velha fórmula do filme de horror em algo banal. Ou seja, a invasão é algo bem antigo, como notou Lynn Spigel em “Make Room For TV: Television And The Family Ideal In Postwar America (University Of Chicago Press, 1992)”: “representações populares de rádio também expressaram apreensão sobre a natureza da mensagem de transmissão. Nos primeiros anos, não só o aparelho mas também os sons emitidos pareciam estranhos e até mesmo perturbadores” (tradução minha).
Lembrar que os sons emitidos pelos rádios foram uma espécie primária de estranheza (que se exacerbaria através da televisão e os filmes em que criaturas sobrenaturais emergem da tela: “O Chamado”, “Poltergeist” etc.) é importante pra tentar uma rasa identificação de onde começou esse processo de invasão. Os melhores discos de vaporwave partem desse contexto de intrusão alheia e a memória que pensamos ter de sua sonoridade pra reformular nossa experiência com o passado não apenas individual, mas com o que constitui também a memória de uma nação. A estranheza citada por Spigel pode ter adquirido outra carga e se ocultado pelas variadas formas de acesso, e é justamente da consciência de que há algo inoperante (esquisito) intrínseco aos acessos e à memória destes acessos que nasce o vaporwave. Quando por fora nada parece existir depois que se desliga do mundo online, nesses breves instantes que passamos offline, o eco da conexão se altera e as lembranças dos comentários de Facebook e portais podem, enfim, passar a ser encaradas como algo bizarro.
Há vários pontos de contato entre os diversos trabalhos de vaporwave, mas – pelo menos em sua primeira fase – eles fazem questão de lembrar a má-funcionalidade da sobrecarga online. Há uma sabedoria passada pelas gerações, mas que está terrivelmente ocultada na difusão de produtos e consumos. A estranheza que os antepassados sentiram ao ouvir os primeiros ruídos abafados do rádio pode ser uma forma de passar essa espécie de sabedoria sensorial, tão comumente abafada pela polidez e pelo excesso de plasticidade. Num mundo de sensações instantâneas, é muito natural que tente se quebrar o zelo através dos meios que o perpetuam (ora, era o que os filmes de horror faziam). Transitar entre os meios mais populares e tirar os seus espectadores do conforto. Ouve-se jingles repetitivos sabendo-se que sua produção é toda voltada ao comércio, mas quando esse som se repete exaustivamente com uma interferência nítida em seu andamento, pode-se perceber uma abertura velada às falhas, a um sistema que se repete por puro desespero. Ouve-se com familiaridade comerciais antigos, mas é na insistência de seus movimentos mercantilizados que se abre uma brecha pra duvidar das próprias condições que criaram esses comerciais. A memória passa a duvidar de seu testemunho e, talvez, é possível reconhecer um tempo usurpado.
Mas como reconhecer a luz do consumo? Pro vaporwave, trata-se de reverter seus sistemas de criação: associar a memória ao erro e não à produção. Quando eu ouço algum disco de vaporwave, a memória relaciona espaços e épocas que eu nunca visitei pra duvidar desse delírio coletivo que são as fantasias de consumo (por isso as capas excessivamente coloridas em lugares emblemáticos pra o capitalismo).
Pro vaporwave, a memória é registrada através de rabiscos e não numa caligrafia exemplar, sendo necessário dissolver as aparentes linhas retas pra fazer um discurso real. Em suas faixas, há uma familiaridade não experimentada, o desejo de visitar algum país através dos anúncios de televisão. Minha memória nasce desses desejos e não do fato de eu ter andando por aqueles países (eu nunca os visitei!). E mesmo com as imensas experiências que eu tive desde a infância, a lembrança do desejo de consumo é algo latente – rouba meu tempo vivido pra instituir uma memória forjada. Se de fato há os momentos reais, os fantasmas do consumo tratam de distorcê-los e fundi-los aos espectros comerciais.
É esse esvaziamento de significados (ou desejo de significar algo) que retira a sensação de estranheza tão importante pra se situar no mundo circundante. A música pode fazer isso, devolver o estranhamento num mundo cristalizado. Lugares necessitam do bizarro pra serem experimentados, e não apenas as exposições em telas e smartphones com filtros embelezadores e alguma frase motivacional. Talvez precisamente o contrário. Talvez seja a partir do seu ponto feio e sombrio que resida algo ainda capaz de fazer o visitante estremecer. O que se deixa transmigrar pra música é que os rastros de desejo velam alguma visão importante. A mensagem de que repulsa e memória afetiva não estão necessariamente tão distantes assim. Que a familiaridade seja estranha e que, em cada som bizarro, exista um eco de reconhecimento. Em cada microcosmo há elementos reconciliadores e excretores funcionando ao mesmo tempo.
Há a presença de nossas primeiras memórias em cada experimentação e também as óbvias decomposições dessas lembranças. Há as diferentes formas de acessar um local: memória, narrativa, mídia etc. O estranhamento humano ao capturar, através de uma mídia, imagens ou sons, é algo que não deve ser perdido. Deve ser reforçado, como exemplificado nessa passagem de “O Último Grito”, de Thomas Pynchon (2017):
“A mão de Reg que segurava a câmara também não era muito firme, e a imagem da tela dançava no enquadramento, às vezes de modo lento e onírico, mas às vezes de modo surpreendentemente abrupto. Quando Reg descobriu o zoom da câmara, começou a fazer zooms que não há como não chamar de arbitrários, detalhes da anatomia humana, figurantes em cenas de multidão, carros interessantes passando no fundo etc. Num dia fatídico na Washington Square, calhou de Reg vender um de seus cassetes a um professor de cinema da NYU, o qual no dia seguinte veio correndo pela rua pra perguntar a Reg, esbaforido, se ele tinha consciência de estar na fronteira da forma de arte póspós-moderna que ele praticava, ‘com a sua subversão neobrechtiana da diegese’. Por achar que aquela história parecia um convite pra um regime cristão de perda de peso, Reg começou a se desinteressar, mas o acadêmico empolgado insistiu, e em pouco tempo Reg passou a exibir suas fitas em seminários de doutorado, e daí a começar a fazer seus próprios filmes foi só um pulo”.
Nessa passagem, o estranhamento é fortalecido como uma adjetivo qualitativo essencial pra abordar o local representado. Em toda a literatura de Thomas Pynchon há uma exagero da paranoia e das teorias conspiratórias sempre estendendo-se ao bizarro e ao grotesco, desde os romances históricos aos de ficção científica. A composição esquizofrênica de uma realidade multirrepresentada permite sim o processo de exposição citado nas primeiras linhas deste texto, mas também, quando utilizado como Pynchon ou como vários produtores de vaporwave, uma noção consciente das falhas residuais atrás das estruturas estabelecidas. Chegam não apenas imagens que configuram uma propaganda (no caso do vaporwave) ou uma superfície nítida (no caso da passagem de “O Último Grito”), mas pequenas falhas que relacionam tanto os meios que produzem a saída (imagens e sons) quanto a memória de quem absorve essas informações. Vem, nessa passagem, a síntese furada das palavras de um professor universitário enquanto pra Reg tudo tem o aroma da novidade. É o estranhamento não apenas com a funcionalidade do aparelho que tem em suas mãos, mas também o fascínio com os corpos, cidade e carros que garantem esse olhar intermediado pela câmera de vídeo. Um pequeno espectro que assegura que as imagens filmadas sejam mais do que fantasmas ou retratação e possam adquirir uma relação menos falaciosa com o espectador.
Já a vaporwave traz símbolos sonoros, maiores ou menores, do espectro da propaganda e reformula suas frequências até que uma falha seja descoberta. Diz que há uma má-funcionalidade que sempre acompanhará as mídias manipuladas, por mais que os produtos aparentes ou nossa memória não imaginem que as coisas sejam capazes de funcionar dessa maneira. Pois é nesses desvios perfurados que a memória pode fugir de sua comercialização e passar a reconhecer os vestígios de imagens formados pela produção. A liberdade de consumo pode ganhar seus contornos verdadeiros sobre as formas limitadas de vida impostas pelo capitalismo. O direito ao reconhecimento das falhas evaporou da cultura popular à medida que a produção musical se mostrou cada vez mais plástica impulsionada por máquinas. A ideia de perfeição é apenas aparente. Emerge das cinzas do aparato tecnológico a má-funcionalidade, lembrando que há uma presença intangível nesses aparelhos e que nunca temos total controle de nada.
Em meio à evolução tecnológica, foi distanciada a noção de estranhamento porque os aparelhos parecem funcionar automaticamente, independentes de nossa vontade. O cenário, no entanto, é ainda mais bizarro: é como se esses aparelhos criassem seu mundo paralelo, codificado em relações entre as máquinas. Então, por que a sensação de normalidade em relação à tecnologia? Porque nossa relação com ela foi retirada da distância e intermediada por ela até com as pessoas mais próximas. A tecnologia é nossa família, nossos amigos, nossos relacionamentos amorosos.
Um fenômeno que grande parte da Geração Z não consegue experimentar porque nasceu dentro dessa superficialidade e é, portanto, produto último do conglomerado de informações. No ano 2018, as mídias não aparentam mais poderem falhar e é sobre essa ideia que os contatos sucedem. Claro, é muito mais agradável operar com algo praticamente imune às falhas.
No Brasil, por motivos econômicos, ainda pode-se relacionar com o mal contato e entrar no atrito tecnologia versus realidade, embora pra classe média e as mais altas essa problemática inexista. Na América do Sul, tudo isso parece ainda mais surreal: a produção musical online e a crítica musical resgatam elementos de uma nostalgia pra adjetivar lançamentos que sofrem do mesmo mal que os comerciais criaram na consciência coletiva, uma referência a algo condicionado apelas pelas necessidades de consumo. É neste período que emerge o vaporwave pra declarar que essa memória fabricada foi um delírio. É bom lembrar que sempre uma força invisível anima os aparelhos e que talvez essa força não esteja propriamente ao lado do consumidor.