Muita gente vai julgar, muita gente vai dar sua sentença, mas a Lupe De Lupe ultrapassou os limites dos textões de redes sociais. Agora, eles viraram música. E relevante.
Vitor Brauer escreveu seu “textão-letra” sobre uma base “noise” (entre aspas porque é só referencial) dividido em três partes: “O Julgamento”, “A Sentença” e “O Sacrifício”, apontando o dedo pras contradições de ambos os lados do espectro político, especialmente pra esquerda “cheirosa” (adjetivo meu).
Brauer tem suas preferências ideológicas apontadas pra esquerda, mas como muitos parece se incomodar com as contradições dos “ativistas de redes sociais”. Atira pra todo lado na sua canção-declamação e, por isso, será igualmente julgado e sentenciado.
De cara, é preciso aplaudi-lo por simplesmente se posicionar. Apesar de o “isentão” ser a pior praga do momento político brasileiro pós-golpe parlamentar e Brauer poder ser confundido com um, vale sublinhar que é justamente o contrário. O letrista e a banda se posicionam e isso já é mais do que quase toda a classe artística, subterrânea principalmente, fez de 2013 pra cá.
Aliás, a Lupe De Lupe tem em seu currículo o ótimo disco “Quarup”, de 2014 (leia e ouça aqui), que já se incomodava com o cenário social e político. A banda, pois, não mostra medo de fincar bandeira e você precisa se perguntar onde está o resto que acha que arte e política não se misturam, como a ecoar o posicionamento sapatenisano de Leifet com relação ao esporte.
A coragem da Lupe De Lupe reforça a questão principal: por que os artistas do nosso subterrâneo não se posicionam politicamente? Os do mainstream, uns e outros, à direita ou à esquerda, ainda cantam seus lados, mas a “música alternativa brasileira” segue alheia ao caos que se abateu na nossa democracia.
O textão, portanto, é bem-vindo.
Melhor ainda por saber que a Lupe De Lupe definitivamente saiu da hibernação. “O Brasil Quer Mais” é o primeiro single do disco “Vocação”, a ser lançado no segundo semestre de 2018, pela Geração Perdida e Balaclava Redors.
A letra completa está abaixo, que pode ser acompanhada junto com o vídeo gravado por Jonathan Tadeu (na Ponte Anita Garibaldi, em Laguna, Santa Catarina, durante a segunda turnê “Sem Sair na Rolling Stone”).
Parte 1 – O Julgamento
Infelizmente não é pra qualquer um, comer pedra feito pão
Às vezes vocês até conversam, mas às vezes vocês saem na mão
Tentar ajudar quem precisa faz diferença ou não?
Infelizmente é música violenta e sobre amor
E infelizmente eu julgo e me acho no direito de julgar
Você julga gente de esquerda que acredita em político
Que ficou super mordido quando sua presidente caiu
Que gritou “Fora GOLPISTA”
Você julga gente de direita que acredita em polícia
Que não segue suas normas e conceitos
Que é o cínico mais crente que você já viu
Você julga gente que não liga pra política
E que acredita na justiça e que político é tudo ladrão
E que o juiz e o advogado não é ladrão
Mas quando a presidente precisou de vocês, vocês tavam se batendo
Quero ver bater panela e postar texto com o cu na mão
Você julga a menina que se diz muito feminista
Que sai na foto e é muito amiga do acusado de abuso machista
Você julga quem não é branco e que se acha muito especial
Que só dá valor pro que não vem de branco
Mas que namora um branco mente aberta e muito espiritual
Você julga a trans e diz que ela não é mulher
Mas você quer direitos iguais para todos
E festeja a diversidade nas festas da sua cidade
E dizem se o sapato não serve não devemos mudar o pé
Você julga a crente e fala que ela é intolerante
Mas você não namoraria um crente pois eles são todos muito ignorantes
Você julga o negro pobre moralista que dá palestra contra as cotas
Que diz que os negros não podem se diminuir
Que acha que só tem medo de polícia quem é bandido
Logo depois ele pergunta pros amigos se tem blitz hoje indo pro sítio
E a gente vai assim, procurando os erros uns nos outros
Sem ver os nossos próprios erros e contradições
Mesmo agora, você está tentando achar um furo no meu raciocínio
Elaborando uma forma de usar o que eu canto contra mim
Você me diz que o Brasil quer mais
Eu digo quer mais é se fuder
A gente ri e compartilha mais um meme
A gente ri sem nem saber porque
Parte 2 – A Sentença
Infelizmente eu canto e faço música triste
Pois brasileiro às vezes é um bicho triste
“Atos bondosos nem sempre são sábios
Atos maldosos nem sempre são tolos
Mas devemos lutar pra fazermos o bem uns pros outros”
Infelizmente é música longa
Infelizmente não é aquela pra fugir da realidade
É aquela pra lutar com a realidade
Outro dia um músico que foi exposto no facebook
Me procurou pra saber porque eu disse pra não gravarem com ele
Se eu conhecia a menina, se eu conhecia ele
Se eu sou um justiceiro ou sei lá o que
E resolveu me ameaçar e me ameaçar pra que?
O rio carioca passava sob os nossos pés
E o novo líder da Rocinha era de GV, o que me fez lembrar
Do dia que o vizinho bateu na mulher
Ela pediu pra eu chamar a polícia
Então ele passou algum tempo na cadeia
Depois olhava pra baixo, andava envergado e envergonhado
Ninguém conversava com ele e ele não tinha um emprego
E eu me senti culpado, mas por que?
Eu vi a acusação, o crime e a punição
E talvez eu me esqueci de ver o perdão
Mas no final das contas o único perdão que importa
É o perdão da mulher abusada, surrada e assassinada
Quando perguntei pra minha melhor amiga ela disse que eu fiz certo
E que homem que bate em mulher tem mais é de se fuder
Depois foi criticar o senhor que disse que bandido bom é bandido morto
“Os humilhados serão exaltados, os exaltados serão humilhados”
E quando me perguntam se eu acho o linchamento certo
Eu lembro do condenado a 181 anos por 37 estupros
Que conseguiu direito pra cumprir em prisão domiciliar
Como diz pras pessoas procurarem a polícia?
Como diz que linchamento online não é certo?
Eu não sei como diz, eu não sei o que é certo
“A violência sexual não começa e acaba com estupro”
Ela começa na nossa educação, na nossa arte e na nossa TV
E acaba com mais um corpo jogado no esgoto
A gente lê a notícia e logo quer esquecer
E na festa ouve um Michael pra fingir que não quer ver
Depois compartilha o nome da Marielle Franco
Que ninguém conhecia, pra nunca ninguém esquecer
Mais uma que precisou de morrer pra você saber
Enquanto isso todos sabem quem são os merdas e quais são os seu nomes
E todo mundo acha que tá certo, é difícil demais
Você me diz que o Brasil quer mais
Eu digo quer mais é se fuder
A gente ri mas por dentro a gente chora
E não choramos à toa, não choramos à toa
Parte 3 – O Sacrifício
Infelizmente eu canto como a vida é, imperfeita como a vida é
Sua arte é você e o que é real nunca vai morrer
E o país se comendo de dentro pra fora
Infelizmente não é todo mundo que tem o privilégio de ficar em cima do muro
O último país ocidental que aboliu a escravidão
Derrubou a sua primeira presidente mulher
Prendeu seu primeiro presidente operário
Infelizmente, infelizmente
Não é possível resolver os problemas do país com uma música
Eu sei bem que o mundo não é a USP, tem de ter consciência
Infelizmente o povo não come conceito
Infelizmente o povo não come educação
Infelizmente o povo não come arte
Infelizmente você julgou quando o homem deu o peixe e não ensinou a pescar
Mas você não pensou que pra pescar você precisa de antes estar vivo
Infelizmente o povo não come hospital
Infelizmente o povo não come futebol, não come carnaval
Ai meu Brasil
Vem mais uma copa, vem mais uma eleição
Eu tenho lutado a minha vida inteira
Eu tenho brigado a minha vida inteira
E por quê? Por quem eu amo? Por mim? Pelo nosso país?
Eu tenho tentado pensar além do tabuleiro, além da raiva e além do medo
Tentando ver o mundo com amor, mas às vezes é difícil demais, é difícil demais
Às vezes eu acho que o mundo não tem solução
Jesus não falou pra gente resolver o mundo
Ele não disse mudai-vos uns aos outros, ele disse amai-vos uns aos outros
Mas, Deus, como é difícil
A gente tem de se sacrificar por quem precisa
E ser responsável pelas próprias ações
E ser punido pelos próprios erros
E se aplaudir sozinho pelos próprios acertos
Tem muita gente por aí que só quer viver em paz, sem treta e sem briga
Mas o homem que quer paz e tem consciência limpa é porque tem má memória
Tantos corpos mortos e espíritos jazem aqui
Com amores e sonhos e dores iguais os meus e os seus
Eles foram esquecidos e nós também seremos, no caminho do sacríficio
Hoje eu corro o risco de todos pararem de me ouvir porque eu fiz essa música
Eu acredito que se você é responsável pelas suas ações, se você se sacrifica
Mil cairão à sua esquerda, dez mil à sua direita
Mas não chegarão a você
A verdadeira bondade está no sacrifício pela pessoa desconhecida
Fazer o bem não é fazer o bem quando não te custa nada
O caminho para o bem é o do sacrifício
É assim que eu pago de volta todos que um dia se sacrificaram por mim
O sacrifício de uma mãe
O sacrifício de uma política assassinada
O sacrifício de um policial
O sacrifício de uma ex-presidente
O sacrifício de um ex-presidente
E você acusado de abuso, o seu sacrifício
Para um dia a sua mãe, a sua filha, a sua namorada não ter que passar
Pelo que a mulher do seu lado passou
Eu te mostro o caminho, mas é preciso coragem pra se sacrificar
É preciso coragem
Prometeu
“Meu irmão, meu inimigo
Debruçado sobre o balcão”
Infelizmente é uma quinta-feira comum
Mas estamos vivos pra lutar e pra cantar
Que você me disse que o Brasil quer mais